Porque é que todos os anos, melhor, todas as vezes, é a mesma história? Porque é que é tão difícil aceitar ser-se orgulhosamente nortenho, e ao mesmo tempo patrioticamente português, convictamente europeu e, sobretudo, entusiasticamente… humano? Porque é que uma qualquer destas pertenças me tem de excluir das outras? Pior, contrapor-me a elas para me afirmar como tal?
Para mim, a humanidade distingue-se entre seres humanos inteligentes e seres humanos estúpidos. E se, por força das coisas, deve haver alguma prioridade, as únicas que estou disposto a aceitar são as evangélicas: primeiro os pequenos, pobres, famintos, presos, doentes, estrangeiros, idosos. É questão de vida ou de morte, se mo permitis: se não está salva a dignidade de quem está no fim da fila, também não está a de quem ocupa os primeiros lugares.
Quando S. Paulo usa a imagem do corpo, não o faz na leitura clássica, que muitos antes dele tinham já proposto. Ou seja, evidenciando a nobreza e, por isso, a primazia de alguns em relação aos outros; antes: «As partes do corpo que consideramos menos honrosas rodeamo-las de maior respeito» (1 Coríntios 12,33). Porque Cristo está igualmente em cada um dos membros do corpo, que, eventualmente, se diferenciam entre eles só pela função. Ser cabeça em vez de pé, branco em vez de negro, do Norte em vez do Sul, não me dá nenhum privilégio nem garantia de qualidade.
Por que, então, continuamos a justificar, até a postular, nas sessões parlamentares como nas redes sociais, que isso está certo, que alguns estejam em barcaças e outros em iates, em vez de todos na mesma barca sob igual bandeira humana e divina? Perante as tétricas imagens que algumas ideologias nos propõem – nós/eles, meu/teu, fronteiras, muros, exploração, bem-estar a qualquer preço, egoísmo nacionalístico, tirania do já e agora, excelência racial, privilégios sociais, estilos de vida indiscutíveis mesmo se fundados na injustiça – urge uma contra-imaginação cristã. Não por nostalgia de outros tempos, que nem é oportuno que regressem. Mas para obedecer ao mandato evangélico de ser fermento neste mundo.
Ao procurar novas imagens, veio à minha mente o que escrevia um Padre da Igreja, Santo Ireneu: «A nossa maneira de pensar é conforme à Eucaristia». Somos muito afortunados: temos à disposição um “Instagram eucarístico” de primeira água para nos libertarmos deste imaginário fosco! Porque ao celebrar a Eucaristia, mais nos radicamos localmente, mais nos tornamos universais. A Eucaristia permite-me uma pertença forte e significativa a uma comunidade local, onde quer que seja no mundo, onde não sou apenas um número no registo do Batismo, mas coprotagonista, juntamente com outros irmãos e irmãs. E, ao mesmo tempo, faz-me concidadão não só dos cristãos de outros países, mas também dos santos da cidade celeste, e, portanto, potencialmente de toda a humanidade, cristãos e outros: «O mundo num pão de altar» (W.T.Cavanaugh).
Os cristãos, realizando o corpo de Cristo, participam numa prática que projeta uma verdadeira “anarquia”, uma rutura com uma certa maneira de pensar. Onde se experimenta o dom gratuito recebido e o empenho a sê-lo para os outros. Uma comunidade que traz a periferia, os pobres, para o centro. Melhor, com um centro, Cristo, que está em todo o lado. Onde se relativizam não só as fronteiras geográficas, mas também as temporais: a Eucaristia é, ao mesmo tempo, memorial, para trás, mas também operativa antecipação de futuro, para a frente. Sim, vamos à missa também para imaginar um outro mundo possível.
In Messaggero di sant'Antonio
Trad. / adapt.: Rui Jorge Martins
Imagem: monkeybusinessimages/Bigstock.com
Publicado em 08.07.2020
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