Na Bíblia diz-se que Deus castiga o pecado com flagelos, mas cristianismo superou «totalmente» essa visão
O coronavírus está a mostrar «novos modelos de amor», mas é
necessário enfrentá-lo não com medo, que conduz ao terror, mas com
temor, que inspira esperança, como também responsabilidade pessoal,
considera o presidente do Conselho Pontifício da Cultura, cardeal
Gianfranco Ravasi, que comenta a posição daqueles para quem o Covid-19 é
um castigo enviado por Deus para punir a humanidade pecadora, e
sublinha que a crise está a fazer sobressair o essencial em detrimento
do superficial.
Tem uma atitude construtiva. Não tem sequer medo de ser contagiado?
Francamente, não, mas a reflexão que gostaria de fazer é sobre o medo: um fator central na história da humanidade, baseado na distinção entre duas categorias bem separadas: de um lado está o medo, que é uma emoção primária negativa, produz terror e conduz à irracionalidade quando cresce. Do outro lado, por seu lado, está o temos, que é preocupação, mas também respeito. A distinção aparece até na Bíblia, e é uma das declarações que se escreviam nos edifícios sagrados: «O princípio da sabedoria é o temor do Senhor». Temor significa, portanto, estar consciente da complexidade da realidade, que nós não somos árbitros absolutos do ser e do existir. O temor é uma virtude, e em certa medida uma necessidade que está a conquistar espaço nestes dias, e que deveria ser de todos.
No entanto, o que prevalece hoje é o medo…
Montaigne dizia: o medo é a coisa de que tenho mais medo. Entendia-o como um excesso de histeria, porque quando predomina sobre tudo adquire uma coloração negativa. Sófocles acrescentava: para quem tem medo, tudo são rumores. O temor, ao contrário, é diferente, porque supõe que haja a consciência da dificuldade e o esforço para a superar. O temor, no fundo, é uma virtude, portanto um empenho. O temor, entre outros aspetos, não pode existir sem esperança, e a esperança sem temor. Só com o medo, está-se sozinho à mercê de um resvalar para o terror.
Transformar o medo do contágio em apenas temor do contágio não é propriamente uma passagem mental simples…
É preciso levar tudo para uma atitude positiva. Por exemplo, começar a compreender o limite da criatura humana. A nossa fragilidade. Num período de triunfo da autonomia, da autossuficiência, da tecnologia, estamos expostos a um limite. Somos frágeis, e a descoberta deste fator não está dada como adquirida. O desafio dos jovens que desafiam o contágio. Não têm ainda a perceção sapiencial de que não somos eternos.
Depois há o tema da ciência…
E é preciso exaltar-lhe sempre a grandeza por aquilo que consegue efetivamente fazer, mas é preciso compreender que não pode tudo. A vacina contra o coronavírus, por exemplo, ainda não foi encontrada. A ciência tem percursos que não esgotam todas as questões. A ciência não consegue resolver o medo, o aspeto existencial. Aqui devem estar mais presentes a cultura e as religiões.
O que é que esta crise nos está a fazer entrever?
Que vemos avançar os novos modelos de amor. Veja-se a fotografia da enfermeira que adormece, esgotada, sobre o teclado. É o símbolo da generosidade num mundo tendencialmente egoísta. Os médicos que arriscam os contágios são um outro exemplo de amor não retórico, mas concreto.
Tem uma atitude construtiva. Não tem sequer medo de ser contagiado?
Francamente, não, mas a reflexão que gostaria de fazer é sobre o medo: um fator central na história da humanidade, baseado na distinção entre duas categorias bem separadas: de um lado está o medo, que é uma emoção primária negativa, produz terror e conduz à irracionalidade quando cresce. Do outro lado, por seu lado, está o temos, que é preocupação, mas também respeito. A distinção aparece até na Bíblia, e é uma das declarações que se escreviam nos edifícios sagrados: «O princípio da sabedoria é o temor do Senhor». Temor significa, portanto, estar consciente da complexidade da realidade, que nós não somos árbitros absolutos do ser e do existir. O temor é uma virtude, e em certa medida uma necessidade que está a conquistar espaço nestes dias, e que deveria ser de todos.
No entanto, o que prevalece hoje é o medo…
Montaigne dizia: o medo é a coisa de que tenho mais medo. Entendia-o como um excesso de histeria, porque quando predomina sobre tudo adquire uma coloração negativa. Sófocles acrescentava: para quem tem medo, tudo são rumores. O temor, ao contrário, é diferente, porque supõe que haja a consciência da dificuldade e o esforço para a superar. O temor, no fundo, é uma virtude, portanto um empenho. O temor, entre outros aspetos, não pode existir sem esperança, e a esperança sem temor. Só com o medo, está-se sozinho à mercê de um resvalar para o terror.
Transformar o medo do contágio em apenas temor do contágio não é propriamente uma passagem mental simples…
É preciso levar tudo para uma atitude positiva. Por exemplo, começar a compreender o limite da criatura humana. A nossa fragilidade. Num período de triunfo da autonomia, da autossuficiência, da tecnologia, estamos expostos a um limite. Somos frágeis, e a descoberta deste fator não está dada como adquirida. O desafio dos jovens que desafiam o contágio. Não têm ainda a perceção sapiencial de que não somos eternos.
Depois há o tema da ciência…
E é preciso exaltar-lhe sempre a grandeza por aquilo que consegue efetivamente fazer, mas é preciso compreender que não pode tudo. A vacina contra o coronavírus, por exemplo, ainda não foi encontrada. A ciência tem percursos que não esgotam todas as questões. A ciência não consegue resolver o medo, o aspeto existencial. Aqui devem estar mais presentes a cultura e as religiões.
O que é que esta crise nos está a fazer entrever?
Que vemos avançar os novos modelos de amor. Veja-se a fotografia da enfermeira que adormece, esgotada, sobre o teclado. É o símbolo da generosidade num mundo tendencialmente egoísta. Os médicos que arriscam os contágios são um outro exemplo de amor não retórico, mas concreto.
© NurseTimes
O vírus não olha ninguém no rosto…
É como se se estivesse a criar uma escala de valores melhor. Como quando se tem de enfrentar uma doença grave. Mesmo que se tenha muito dinheiro e a possibilidade de ter tratamentos melhores, a escala de valores assume outra disposição. Os afetos, por exemplo, como também a invocação a Deus por parte do não crente. Nem tudo se reconduz à concretude do egoísmo imediato. Nestes dias há maior preocupação com os familiares, com o cônjuge. Há uma educação que é chamada a paideia da dor. Saul Bellow repetia que o sofrimento, por vezes, serve para expulsar o sono da razão e o vazio da humanidade. A banalidade superficial é colocada em crise, e as coisas essenciais tornam-se fundamentais.
O coronavírus está a esfarelar o tabu da morte?
E de que maneira. Está a fazer-nos compreender que não somos eternos. Somos morredoiros. Na nossa sociedade, a ideia da morte tinha-se tornado a grande apátrida. Ninguém a queria. Era até considerado pouco educado falar dela. A este termo eram preferidos sinónimos, como falecimento, desaparecimento. Não se podia, depois, fazê-la ver às crianças. Por outro lado havia a pornografia da morte, isto é, o excesso de imagens que ciclicamente aparecem na internet. O coronavírus reposicionou a ideia de morte como percurso natural da nossa vida. Devemos fazer as contas.
Há fundamentalistas cristãos para quem o vírus é o castigo de Deus.
São conceções retributivas que estão na Bíblia. Deus manda os flagelos porque pecámos. Mas no cristianismo esta visão é totalmente superada. Jesus não nos abandona na nossa morte, fica ao nosso lado. Sempre.
Franca Giansoldati
In Cortile dei Gentili
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: marketanovakova/Bigstock.com
Publicado em 23.03.2020
SNPC
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