Era o ano de 1915, nos exórdios da primeira guerra mundial, e o então popular escritor polaco, naturalizado inglês também no nome e apelido, Joseph Conrad, publicava um dos seus muitos romances, intitulado “Victory”. Ele fazia referência explícita a um parágrafo, semelhante a uma marcha triunfal, que S. Paulo tinha encastoado no capítulo 15 da Primeira Carta aos Coríntios, versículos 51-57. Ao som da trompa angélica os mortos ressurgiam, o corpo tornava-se incorruptível e imortal, e, citando o profeta Oseias, o apóstolo lançava o seu desafio: «Onde está, ò Morte, a tua vitória? Onde está, ò Morte, o teu aguilhão?... Demos graças a Deus que nos dá a vitória por meio do Senhor nosso Jesus Cristo!».
Na realidade, o romance de Conrad desembocava numa subversão radical da asserção paulina, porque o mundo se precipitava num caos de sangue, fogo, suicídios, e a última palavra era “Nothing!”. Evocamos esta obra pouco conhecida do autor de “O coração das trevas” e “Lord Jim”, nas proximidades da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo (29 de junho). Paulo, com efeito, não é só uma presença fundamental no Novo Testamento, mas na própria história e cultura do Ocidente. Só para citar um dado, a Reforma de Lutero realizou-se sob o estandarte do apóstolo, em particular da sua obra-prima, a Carta aos Romanos.
E dado que não estamos longe de 2021, sétimo centenário da morte de Dante, recordemos que Paulo, para o poeta, era «vaso de eleição», aliás, «o grande vaso/ do Espírito Santo», pronto a empunhar «uma espada lúcida e aguda», a da sua palavra cortante e penetrante. De facto, além da trama da sua biografia missionária entretecida pelo discípulo S. Lucas nos Atos dos Apóstolos, são 13 as cartas a ele atribuídas, assinalando a imponência da sua figura na história do cristianismo. Um “corpus” epistolar que ocupa 2003 dos 5621 versículos de todo o Novo Testamento. Um verdadeiro e autêntico Evangelho de Paulo colocado ao lado do de Jesus, composto pelos quatro evangelistas.
Um Evangelho incessantemente comentado, considerado a estrela polar da teologia cristã, melhor, labareda, torrente, exercício de atleta, de soldado e de navegador, para usar as metáforas que lhe tinha atribuído um grande Padre da Igreja como João Crisóstomo. Um personagem, contudo, não desprovido de detratores ferozes, como Nietzsche, que para ele cunhou a ofensiva definição de “disangelista”, ou seja, anunciador de uma má nova, ao contrário dos «evangelistas». Nem Paulo teria ficado feliz por ser classificado por Gramsci como “o Lenine do cristianismo”, enquanto Ernest Renan, no seu “Saint Paul” (1869) o considerava a fonte de todos «os principais defeitos da teologia cristã…, do subtil Agostinho ao árido Tomás de Aquino, do tétrico calvinista ao extravagante jansenista», à dissemelhança de Jesus, porto de abrigo e de «repouso de todas as almas» nobres.
O que é facto é que se continua a ler e a comentar as suas Cartas com aproximações e resultados diversos, a partir das próprias origens do cristianismo, como já se comprova no Novo Testamento, onde um autor anónimo, que se reveste da autoridade de S. Pedro, observa que «o nosso caríssimo irmão Paulo escreveu segundo a sabedoria que lhe foi dada em todas as suas cartas. Nelas há alguns pontos difíceis de compreender, que os ignorantes e os incertos deturpam» (2 Pedro 3,15-16). Pois bem, um comentário paulino, muito original, surgiu recentemente, e merece ser assinalado. Aos seus ombros está um antecedente. Em 2015, quatro mulheres biblistas decidiram traduzir e comentar juntas os Evangelhos. Duas, Rosalba Manes e Rosanna Virgili (esta publicada em Portugal), optaram por continuar essa experiência, dedicando-se às Cartas de Paulo, agregando uma nova colega, Emanuela Buccioni.
É óbvio que a base fundamental desta leitura responde aos cânones exegéticos codificados, à metodologias histórico-críticas e literárias, que não são de “género”. Todavia, é evidente que o sujeito que lê um texto, até a nível de tradução, produz o seu filtro interpretativo, a maior ou menor finura do seu olhar, um pouco como acontece na execução de uma partitura musical. E isto emerge no volume logo a partir da introdução geral, que se despoja do aparato algo pedante do modelo académico, dos seus esquemas e argumentações, cujo rigor por vezes se converte em rigidez. Na verdade, entrevê-se no texto o conhecimento da instrumentação científica clássica e recente, mas o uso é mais criativo e fecundo, a linguagem é mais fresca e incisiva, e a autenticidade do apóstolo emerge melhor em todas as suas facetas.
Inclusive naquelas penosas de digerir para uma mulher: é o caso das suas asserções consideradas antifeministas, como o véu imposto às fiéis ou o estarem caladas nas assembleias, porque há os «maridos que compreendem, falam e explicam» também a elas. E, ainda, a submissão aos maridos, porque, «como a Igreja se põe à escuta aos pés de Cristo, assim as mulheres em relação aos maridos, em tudo» (Efésios 5,24). Na realidade, o tecido contextual dessas e outras afirmações paulinas é mais complexo, como o era o histórico e social de então, ao passo que o próprio dado textual pode revelar dobras ocultas de sinal diferente. Leia-se, então, o comentário a esses passos e o excurso final de Virgili precisamente sobre “Paulo e as mulheres” (entre outros elementos, de acordo com a atestação da Carta aos Romanos, capítulo 16, dessa comunidade o apóstolo opta por fazer subir à ribalta, indicando os nomes, sete mulheres e só cinco homens).
Este não é o lugar para um exame de comentários específicos, sobretudo quando se têm de encarar passos paulinos cristalizados na interpretação de séculos sucessivos, esquecendo que muitas vezes Paulo propõe um processo dinâmico de busca na imensidade do mistério teológico e cristológico. Ele não hesita, por exemplo, em opor-se às divagações de um misticismo excessivo, como o da glossolalia, ou seja, das linguagens carismáticas fluidas e vagas: «Na assembleia prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência para instruir também os outros, mais do que dez mil palavras com o dom das línguas» (1 Coríntios 14,19).
A este volume – que aconselhamos a todos aqueles que desejam encontrar uma figura capital de referência para o conhecimento do cristianismo – associamos, só através de uma referência – um instrumento mais estritamente científico que diz respeito, de maneira indireta, a Paulo. Como se referiu, Lucas, além do seu Evangelho, o mais longo dos quatro, deixou também um retrato da Igreja das origens na sua segunda obra, os Atos dos Apóstolos. Um dos maiores especialistas nestes escritos, Daniel Marguerat, da universidade de Lausanne (também publicado em Portugal), oferece-lhes um mapa muito preciso que segue o percurso lucano nas suas várias articulações temáticas, para chegar ao perfil de «Paulo segundo Lucas», encarando também uma interrogação que reflete uma comum expetativa desiludida: porque é que Lucas não narrou a morte de Paulo, centrando-se apenas nas suas brandas detenções domiciliárias em Roma? As respostas hipotéticas, que deixamos ao leitor, são certamente surpreendentes.
Presidente do Consleho Pontifício da Cultura
In Conselho Pontifício da Cultura
Imagem: "S. Paulo" (det.) | Giovan Battista Beinaschi
Publicado em 06.07.2020
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