Para compreender o papa Francisco, esqueça Roma, e aponte para Lampedusa

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Há lugares tão associados a acontecimentos particulares na história, que só a sua menção convoca uma multiplicidade de associações e emoções. Por exemplo, para nos referirmos à história de Portugal, Aljubarrota. No contexto global, muito recentemente, e crescentemente, introduza-se Lampedusa, no sétimo aniversário de uma das mais breves, e todavia mais paradigmáticas, viagens papais de todos os tempos.
Lampedusa é uma das três Ilhas Pelágias, designação que não constitui referência a Pelágio, monge herético do século IV para quem a salvação poderia ser alcançada exclusivamente à custa do esforço pessoal, sem a graça divina, mas à palavra grega que significa “mar aberto”.
Localizada na costa da Sicília, Lampedusa é o ponto mais a sul de Itália – está mais próxima da Tunísia, cerca de 135 km, do que da Sicília (220 km), e, geologicamente, faz parte do continente africano. É um destino turístico, e uma das suas praias for considerada a melhor do mundo, em 2013, pelo TripAdvisor.
Ao longo da história, Lampedusa fez parte de Espanha, Malta, Império Britânico, Reino de Nápoles, e, desde 1861, Itália, embora a lealdade a esses territórios tenha sido relativa (diz-se que em 1943, durante a segunda guerra mundial, o piloto de um caça britânico foi forçado a aterrar na ilha quando ficou sem combustível, e o comandante da guarnição italiana local logo se rendeu ao surpreendido aviador, que estava sozinho).
Nada disto, no entanto, é o que torna Lampedusa globalmente evocativo, mas sim o papel da ilha como ponto de entrada primário na Europa para vagas após vagas de migrantes e refugiados que fogem de África, Médio Oriente e Ásia.


Francisco condenou o que denominou de «globalização da indiferença» em relação ao destino das pessoas que fogem da violência e da pobreza, tendo passado algum do seu tempo a falar, abraçar e rezar com várias delas



Foi em 1998 que pela primeira vez se estabeleceu no centro de acolhimento e detenção em Lampedusa, como resposta ao número crescente de migrantes, refugiados e pessoas em busca de asilo que atravessavam o mar Mediterrâneo. Originalmente, a maioria eram africanos de nações como o Gana, Mali e Nigéria, forçados à travessia pela pobreza e violência.
Essas pequenas marés iniciais do final da década de 90 depressa se tornaram ondulações colossais nos anos 2000, especialmente após o início da guerra civil na Síria, em 2011, a par de convulsões na Tunísia e na Líbia.
A capacidade do centro, para 800 pessoas, foi ultrapassada, tendo muitas vezes abrigado dois mil ou mais migrantes. Outros dezenas de milhares foram alojados em espaços improvisados a campo aberto, nas proximidades. As condições eram notoriamente primárias – uma reportagem da RAI, televisão nacional da Itália, amplamente divulgada, chegou a comparar o centro de Lampedusa a um campo de concentração nazista e a Abu Ghraib.
O que elevou Lampedusa a estatuto icónico não foi apenas o drama humano, mas o facto de um elétrico novo papa a escolheu para a sua primeira viagem fora de Roma, a 8 de julho de 2013. A visita foi de apenas quatro horas e meia, mas raramente um mero meio-dia na vida de um papado foi tão repleto de simbolismo e substância.
À chegada, Francisco lançou uma coroa de flores ao mar, para assinalar os milhares de migrantes e refugiados que tinham morrido ao tentar fazer a travessia marítima em frágeis, sobrelotadas e inseguras barcas. Uma estimativa aponta para 20 mil pessoas afogadas no mar ao longo da última década.


Sete anos mais tarde, uma prova do impacto da viagem é o de uma coligação global de Organizações Não-Governamentais ter designado 8 de julho como o Dia Internacional do Mar Mediterrâneo



A missa ao ar livre a que presidiu foi junto do local onde os migrantes eram detidos e de um cemitério de embarcações. O altar foi formado por um dos destroços. Francisco condenou o que denominou de «globalização da indiferença» em relação ao destino das pessoas que fogem da violência e da pobreza, tendo passado algum do seu tempo a falar, abraçar e rezar com várias delas.
Na homilia, afirmou que ver as imagens daqueles migrantes e refugiados era como «um espinho no coração que faz doer», impelindo-o a ir.
Desde então, Francisco referenciou Lampedusa múltiplas vezes, de tal maneira que se tornou uma espécie de tropo para toda a sua agenda social e evangélica. A cada ano ele celebra uma missa para evocar a visita, tal como fez nesta quarta-feira, quando recordou o momento em que falou com um refugiado etíope e o seu intérprete deixou de lado alguns dos detalhes mais arrepiantes. Mais tarde, numa receção, uma mulher etíope disse-lhe que o que o intérprete tinha dito «não era nem um quarto da tortura e sofrimento que experimentaram»,
Sete anos mais tarde, uma prova do impacto da viagem é o de uma coligação global de Organizações Não-Governamentais ter designado 8 de julho como o Dia Internacional do Mar Mediterrâneo, num esforço para despertar a consciência para as condições precárias de migrantes e refugiados, bem como para os desafios ecológicos que afetam a região mediterrânica.
Diz-se, por vezes, que quando se quer compreender a identidade de Portugal se tem de ir a Aljubarrota. Da mesma maneira, não se pode compreender o pontificado de Francisco sem ir a Lampedusa – o único local no mapa global, mais do que qualquer outro, ainda mais do que a sua Argentina natal ou a sua adotada cidade de Roma, ao qual este papa e a sua visão para a Igreja e para a humanidade serão para sempre associados.


John L. Allen Jr.
In Crux
Trad. / adapt.: Rui Jorge Martins
Imagem: Papa Francisco | Lampedusa, 8.7.2013 | D.R.
Publicado em 10.07.2020

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