Se tivéssemos de escolher um dia do Tríduo Pascal para contar o que está a acontecer, diríamos que é Sexta-feira Santa. Porque nesse dia entramos numa igreja e apanhamos um baque. Não conhecemos nada. O sacrário está vazio, a porta aberta; as cruzes todas tapadas; o altar nu. E é esse tempo de esvaziamento que estamos a viver. Mas não há Domingo da Ressurreição sem passar pela Sexta-feira Santa e por aquilo que ela significa: o silêncio, o abandono, a capacidade de mergulhar fundo, de mergulhar existencialmente até ao fim.
E isso, para nós, cristãos, coloca-nos muitas questões. Muitas vezes, o nosso cristianismo é muito epidérmico, muito de superfície. E a Sexta-feira Santa fala-nos de um cristianismo que dói, de um cristianismo trágico, de um cristianismo que nos desnuda, que nos cinde, que nos divide, que nos derrota, que nos faz prostrar., E é um pouco essa experiência radical que nós fazemos.
Há alguns meses, eu celebrava missa que era difundida através da internet, como tantos padres, para animarmos a comunidade, e porque não podemos viver sem a Eucaristia. Mas depois chega aquele momento em que o celebrante comunga, e a assembleia, que é uma assembleia remota, não pode comungar. Não – pode comungar. Aquele momento é um momento de comunhão, mas é comunhão pelo desejo, comunhão espiritual. É como se nos abeirássemos de um poço e bebêssemos, e nos saciássemos da nossa própria sede.
Espiritualmente, é um tempo exigente, mas intensíssimo. É, verdadeiramente, um tempo de Deus, porque a saudade de Deus é um banho, um mergulho no oceano de Deus. E poder viver do desejo de Deus é algo que, possivelmente, muitos cristãos não tinham experimentado. Porquê? Porque era tudo fácil. E, muitas vezes, as práticas rituais tornam-se expressão de um consumo, porque tudo nos é dado.
Num tempo de privação, cresce o desejo, e o desejo é o princípio da Páscoa. Porque, na quinta-feira [última ceia, instituição da Eucaristia, véspera da morte], Jesus disse: desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco. No fundo, é este desejo ardente que, espiritualmente, também estamos a construir.
Estamos dentro de um parto, e não é fácil. Mas é algo que estamos a descobrir. Penso que estamos a descobrir a comunidade. Há uma história bonita da antropóloga Margaret Mead, um aluno perguntou-lhe qual era o elemento mais antigo de civilização; e todos pensaram que ela ia falar dos instrumentos de caça ou de pesca, ou então dos artefactos de barro, de cozinha dos povos primeiros. E ela, surpreendendo todos, disse: para mim, o primeiro elemento de civilização é um fémur partido e restaurado; porque, para isso ter acontecido, quer dizer que uma pessoa não foi deixada sozinha para trás, que alguém ficou ao seu lado, que alguém garantiu naquela hora de vulnerabilidade o tempo necessário para ela se curar. Por isso, no princípio, está a comunidade. E a comunidade descobrimo-la não na força, mas na vulnerabilidade.
Esta hora, em que parece que as igrejas só podem existir a meio-gás, com pouca gente, tantas limitações, tanto sofrimento, em que à pergunta sobre o que vai acontecer, qual será o futuro da Igreja, das comunidades, respondemos que a comunidade tem a origem quando fica junta na fragilidade. No princípio é a comunidade, mas uma comunidade capaz de abraçar a sua própria vulnerabilidade.
Que modelo eclesiológico [de Igreja] vai sair daqui? Sem dúvida um modelo capaz de ser mais atento e integrador da fragilidade. Entender melhor a fragilidade e a vulnerabilidade, e aprender a força de uma espiritualidade que se vive na simplicidade, na redução e na kénosis [esvaziamento]. Se um cristão, durante três meses, só pôde comungar espiritualmente, sem dúvida que ele fez um caminho espiritual que depois vai ser muito importante no resto da sua vida.
Não considero que se deva dizer que as igrejas estão [estiveram] fechadas, porque cada família é uma igreja doméstica. Por isso, há uma igreja-templo que está [esteve] fechada, mas milhares de igrejas nas nossas cidades, nos nossos lugares, estão abertas. E isso é um chamamento para redescobrir a força dessa igreja-âncora, dessa igreja primeira, que é a oíkia, que é a casa. Antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo [judaico] e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã.
Há aqui um grande chamamento, também catequético, também pastoral, para valorizar a experiência espiritual e o protagonismo pastoral que a família pode ter. Eu tenho muitas famílias amigas que me dizem: vamos ter saudades da pandemia. Ora, esse capital de alegria, esse capital de vida comum, esse capital de vida reencontrada – com as suas tensões, as suas incertezas –, essa beleza de se ter redescoberto juntos é uma grande força para a própria Igreja.
Por isso, penso que temos de vencer o medo e tornar esta hora uma hora de esperança. O poema de António Ramos Rosa é um bom mote – não posso adiar o coração para outro século, não posso adiar o amor –, a certeza de que este não é um tempo de vida adiada, de vida suspensa, mas um tempo para descobrir e celebrar novos compromissos, ou uma nova profundidade de compromisso. Como dizia o grande João Guimarães Rosa, a vida é travessia. E a vida espiritual não é outra coisa senão tensão e travessia.
Arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana
Excertos da intervenção no ciclo "Tecendo redes - Diálogos online de Teologia Pastoral" (2020), 22.4.2020
Fonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, Brasil
Edição e transcrição: Rui Jorge Martins
Imagem: Aliaksandr Antanovich/Bigstock.com
Publicado em 24.06.2020
Comentários
Enviar um comentário