Que rosto da Igreja após a pandemia?, pelo cardeal Tolentino

https://www.snpcultura.org/imagens/igreja_20200624_pc.jpgSe tivéssemos de escolher um dia do Tríduo Pascal para contar o que está a acontecer, diríamos que é Sexta-feira Santa. Porque nesse dia entramos numa igreja e apanhamos um baque. Não conhecemos nada. O sacrário está vazio, a porta aberta; as cruzes todas tapadas; o altar nu. E é esse tempo de esvaziamento que estamos a viver. Mas não há Domingo da Ressurreição sem passar pela Sexta-feira Santa e por aquilo que ela significa: o silêncio, o abandono, a capacidade de mergulhar fundo, de mergulhar existencialmente até ao fim.

E isso, para nós, cristãos, coloca-nos muitas questões. Muitas vezes, o nosso cristianismo é muito epidérmico, muito de superfície. E a Sexta-feira Santa fala-nos de um cristianismo que dói, de um cristianismo trágico, de um cristianismo que nos desnuda, que nos cinde, que nos divide, que nos derrota, que nos faz prostrar., E é um pouco essa experiência radical que nós fazemos.

Há alguns meses, eu celebrava missa que era difundida através da internet, como tantos padres, para animarmos a comunidade, e porque não podemos viver sem a Eucaristia. Mas depois chega aquele momento em que o celebrante comunga, e a assembleia, que é uma assembleia remota, não pode comungar. Não – pode comungar. Aquele momento é um momento de comunhão, mas é comunhão pelo desejo, comunhão espiritual. É como se nos abeirássemos de um poço e bebêssemos, e nos saciássemos da nossa própria sede.

Espiritualmente, é um tempo exigente, mas intensíssimo. É, verdadeiramente, um tempo de Deus, porque a saudade de Deus é um banho, um mergulho no oceano de Deus. E poder viver do desejo de Deus é algo que, possivelmente, muitos cristãos não tinham experimentado. Porquê? Porque era tudo fácil. E, muitas vezes, as práticas rituais tornam-se expressão de um consumo, porque tudo nos é dado.



Esse capital de alegria, esse capital de vida comum, esse capital de vida reencontrada – com as suas tensões, as suas incertezas –, essa beleza de se ter redescoberto juntos é uma grande força para a própria Igreja



Num tempo de privação, cresce o desejo, e o desejo é o princípio da Páscoa. Porque, na quinta-feira [última ceia, instituição da Eucaristia, véspera da morte], Jesus disse: desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco. No fundo, é este desejo ardente que, espiritualmente, também estamos a construir.

Estamos dentro de um parto, e não é fácil. Mas é algo que estamos a descobrir. Penso que estamos a descobrir a comunidade. Há uma história bonita da antropóloga Margaret Mead, um aluno perguntou-lhe qual era o elemento mais antigo de civilização; e todos pensaram que ela ia falar dos instrumentos de caça ou de pesca, ou então dos artefactos de barro, de cozinha dos povos primeiros. E ela, surpreendendo todos, disse: para mim, o primeiro elemento de civilização é um fémur partido e restaurado; porque, para isso ter acontecido, quer dizer que uma pessoa não foi deixada sozinha para trás, que alguém ficou ao seu lado, que alguém garantiu naquela hora de vulnerabilidade o tempo necessário para ela se curar. Por isso, no princípio, está a comunidade. E a comunidade descobrimo-la não na força, mas na vulnerabilidade.

Esta hora, em que parece que as igrejas só podem existir a meio-gás, com pouca gente, tantas limitações, tanto sofrimento, em que à pergunta sobre o que vai acontecer, qual será o futuro da Igreja, das comunidades, respondemos que a comunidade tem a origem quando fica junta na fragilidade. No princípio é a comunidade, mas uma comunidade capaz de abraçar a sua própria vulnerabilidade.

Que modelo eclesiológico [de Igreja] vai sair daqui? Sem dúvida um modelo capaz de ser mais atento e integrador da fragilidade. Entender melhor a fragilidade e a vulnerabilidade, e aprender a força de uma espiritualidade que se vive na simplicidade, na redução e na kénosis [esvaziamento]. Se um cristão, durante três meses, só pôde comungar espiritualmente, sem dúvida que ele fez um caminho espiritual que depois vai ser muito importante no resto da sua vida.



O poema de António Ramos Rosa é um bom mote – não posso adiar o coração para outro século, não posso adiar o amor –, a certeza de que este não é um tempo de vida adiada, de vida suspensa, mas um tempo para descobrir e celebrar novos compromissos, ou uma nova profundidade de compromisso



Não considero que se deva dizer que as igrejas estão [estiveram] fechadas, porque cada família é uma igreja doméstica. Por isso, há uma igreja-templo que está [esteve] fechada, mas milhares de igrejas nas nossas cidades, nos nossos lugares, estão abertas. E isso é um chamamento para redescobrir a força dessa igreja-âncora, dessa igreja primeira, que é a oíkia, que é a casa. Antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo [judaico] e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã.

Há aqui um grande chamamento, também catequético, também pastoral, para valorizar a experiência espiritual e o protagonismo pastoral que a família pode ter. Eu tenho muitas famílias amigas que me dizem: vamos ter saudades da pandemia. Ora, esse capital de alegria, esse capital de vida comum, esse capital de vida reencontrada – com as suas tensões, as suas incertezas –, essa beleza de se ter redescoberto juntos é uma grande força para a própria Igreja.

Por isso, penso que temos de vencer o medo e tornar esta hora uma hora de esperança. O poema de António Ramos Rosa é um bom mote – não posso adiar o coração para outro século, não posso adiar o amor –, a certeza de que este não é um tempo de vida adiada, de vida suspensa, mas um tempo para descobrir e celebrar novos compromissos, ou uma nova profundidade de compromisso. Como dizia o grande João Guimarães Rosa, a vida é travessia. E a vida espiritual não é outra coisa senão tensão e travessia.


 

Card. José Tolentino Mendonça
Arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana
Excertos da intervenção no ciclo "Tecendo redes - Diálogos online de Teologia Pastoral" (2020), 22.4.2020
Fonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, Brasil
Edição e transcrição: Rui Jorge Martins
Imagem: Aliaksandr Antanovich/Bigstock.com
Publicado em 24.06.2020

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