Para o cristianismo, o próximo vem antes do nacionalismo

https://www.snpcultura.org/imagens/pessoas_20200624_pc.jpgNestes dias parece voltar ao auge, em alguns países, uma forma de nacionalismo religioso-cultural. A religião é usada quer para fins de consenso pessoal, quer para lançar uma mensagem política que se identifica com a fidelidade e a devoção das pessoas a um Estado. Dá-se como adquirido que nele as pessoas têm em comum a identidade, a origem, a história, e que elas sustentam uma homogeneidade ideológica, cultural e religiosa, consolidada pelas fronteiras geopolíticas. Na realidade, no mundo globalizado contemporâneo não há nenhuma, entre as entidades geográficas que podem definir-se por “nações”, que tenha no seu interior uma só identidade homogénea sob o perfil linguístico ou religioso, ou de qualquer outro ponto de vista. Por conseguinte, um nacionalismo radical só é possível se ele elimina essa diversidade. Daqui resulta que é mais do que nunca necessário realizar uma libertadora desconstrução do nacionalismo. Sejamos claros: o nacionalismo nunca pode ser confundido com o patriotismo. Com efeito, enquanto o patriota se orgulha do seu país por aquilo que faz, o nacionalista orgulha-se do seu país, faça o que fizer; o primeiro contribui para criar sentido de responsabilidade, enquanto o segundo conduz a uma arrogância cega que conduz à guerra.

 

A relevância de uma resposta teológica ao nacionalismo

Quais são os contornos da mistificação do nacionalismo? As narrativas nacionalistas eficazes mitificam, habitualmente, a história e historizam as mitologias com grande sucesso. Consideremos, a título de exemplo, o seguinte excerto de Johann Dräseke, escrito em Bremen em 1813: «Todos os templos, todas as escolas, todos os municípios, todos os lugares de trabalho, todas as casas e todas as famílias devem tornar-se arsenais em defesa do nosso povo contra tudo aquilo que é estrangeiro e malvado. O céu e a terra devem unir-se na Alemanha. A Igreja deve tornar-se um Estado para acrescer o seu poder, e o Estado deve tornar-se uma Igreja até ser o Reino de Deus. Só quando nos tornarmos devotos neste sentido, e nos unirmos todos nesta devoção, e nos tornarmos fortes nessa unidade, nunca mais teremos de suportar um jugo».

Mesmo um sentimento nacional de certa forma laico como o dos EUA encapotou-se de aspetos “religiosos”, com uma espécie de divinização em relação a alguns dos pais fundadores e uma narrativa centrada no papel e favores especiais concedidos por Deus àquele povo. No período após a segunda guerra mundial, a exaltação do “american way of life” comportou a apoteose da vida nacional, a equiparação dos valores nacionais a uma religião,. a divinização dos heróis nacionais e a transformação da história nacional em “heilsgeschichte” (“história da salvação”). Como já foi escrito pela revista “La Civiltà Cattolica”, o pensamenti de algumas coletividades sociais religiosas fundamentalistas «considera os EUA uma nação abençoada por Deus, e não hesita em basear o crescimento económico do país na adesão literal à Bíblia. Dentro desta narrativa, aquilo que impele para o conflito não é banido». Pelo contrário, «muitas vezes a própria guerra é assimilada aos feitos heroicos de conquista do Deus dos exércitos de Gedeão e de David. Nesta visão maniqueia, as armas podem, portanto, assumir uma justificação de caráter teológico, e não faltam também hoje pastores que procuram para o efeito um fundamento bíblico, usando trechos da Sagrada Escritura como pretextos fora do contexto».

Uma resposta ao nacionalismo é uma resposta autenticamente religiosa, ou seja, uma resposta que, através da teologia, saiba colher a essência do próprio discurso religioso, desconstruindo narrativas e práticas que se revelam destrutivas em vez de construtivas, como as do nacionalismo. A teologia não é só importante, mas essencial, para desconstruir muitas narrações e muitas práticas destrutivas que desumanizam os indivíduos e a coletividade, como a retórica e o exercício do nacionalismo religioso-cultural. O papa Francisco expressou-se em relação à relevância religiosa perante os perigos de hoje nestes termos: «As religiões têm uma tarefa educativa: ajudar a extrair do ser humano o melhor de si», enquanto «emergem cada vez mais as reações rígidas e fundamentalistas de quem, com a violência da palavra e dos gestos, quer impor atitudes extremas e radicalizadas, o mais distantes do Deus vivo».

 

O desejo salvífico universal de Deus

Os textos do Antigo Testamento são muito ambíguos em relação ao nacionalismo. Por um lado, sustêm o exclusivismo religioso-cultural de Israel e o seu correlato sentimento de ser favorito de Deus; por outro, retratam a visão do amor universal de Deus que cuida de todos os povos. Ou seja, por um lado temos a denominada «trajetória de consolidação real», tendente a favorecer, defender e justificar o papel da classe dirigente judaica e a sua teologia. Por outro, é expressiva a denominada «trajetória de libertação profética», caracterizada pela autêntica crítica quando aos estilos de vida idólatra dos governantes, com a previsão do juízo, do castigo e de uma sucessiva reconstrução de Judá no âmbito de uma providência universal de Deus.

Os profetas, com efeito, relativizam a proximidade exclusiva de Israel a Deus: «Porventura não sois vós para mim, ó filhos de Israel,como os filhos dos cuchitas? - oráculo do Senhor. Acaso, não fiz sair Israel da terra do Egito, os filisteus de Caftor, e os arameus de Quir?» (Amós 9,7), esconjurando uma visão tipicamente exclusivista, com a repetida evocação da mescla de raças que caracteriza a história judaica, do rei pagão Ciro que é «o eleito do Senhor» (Isaías 45,1), do rei Nabucadonosor que é «o servo do Senhor» (Jeremias 27,6), e de Deus, que não é Deus do seu povo «só ao perto», mas também «ao longe» (Jeremias 23,23). Ler estes textos no interior de um quadro global da justiça e do amor de Deus como são revelados pelo acontecimento Cristo comporta a denúncia inequívoca de toda a opressão e exploração de qualqer ser humano, em qualquer circunstância. Qualquer visão que não se coloque neste nível vai, certamente, contra o querer salvífico universal de Deus.

 

O «próximo» em vez do nacionalismo

Neste sentido, é iluminador tomar em consideração a parábola do bom samaritano (cf. Lucas 10,25-37). O seu impacto reside na idealização do samaritano, em vez da de um (bom) judeu. Ainda que criticando o sacerdote e o levita pela sua religiosidade não liberatória, a parábola poderia ter exaltado um judeu qualquer, um pobre. Porque é que, em vez disso, exalta um samaritano? A nova categoria, do “próximo”, é um antídoto para autojustificação nacionalista. O próximo não coincide com o correligionário e o conacional. A parábola do bom samaritano destrói o mito de um nacionalismo que se propõe construir uma nação sobre os escombros de alguns dos seus cidadãos e dos seus vizinhos. O empenho em fazer-se próximo seja de quem for, como é exaltado na parábola, exige passos concretos. Diante de um próximo verdadeiro e vivo, o nacionalismo e o patriotismo hipócrita acabam no esquecimento, e emerge a verdade concreta de cada ser humano criado à imagem e semelhança de Deus.

O acontecimento pascal, da morte e ressurreição de Jesus, marcará depois definitivamente a passagem a um novo Povo de Deus, cujos membros se reconciliaram no sangue de Cristo independentemente das suas pertenças e culturas. Como diz S. Paulo, «a nossa cidadania (…) está nos céus, e de lá esperamos como salvador o Senhor Jesus Cristo» (Filipenses 3,20). Esta “cidadania celeste” transcende quaisquer cidadanias facciosas e idólatras. Além disso, o amor do próximo é verdadeiramente o amor do “outro”, em contraste com «o amor de si próprio ou do semelhante» sustentado pelo nacionalismo, porque este último é «amor por mim», um amor narcisista, que o cristianismo não pode aprovar. Justamente, portanto, a parábola do bom samaritano estabelece a prioridade não do meu povo ou da minha nação, mas do necessitado, quem quer e onde quer que esteja. Ao contrário, o facciosismo do nacionalista favorece arbitrariamente aqueles que diante de Deus não têm privilégios ou condições especiais. Jesus ensina um amor radical que reconhece o valor igual de cada pessoa criada à imagem de Deus, e proíbe um tratamento especial para mim e para os meus.


 

Joseph Lobo
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: AndreyPopov/Bigstock.com
Publicado em 24.06.2020

Comentários