«Ó Senhor, eu mesma serei a tua música», diz um belo verso do poeta John Donne (1571-1631) mencionado pelo cardeal Gianfranco Ravasi no seu novo livro de reflexões bíblicas, “As sete palavras de Maria” (“La sette parole di Maria” (it.), 152 páginas, 11,40€, ed. EDB), pontuado, como sempre, por numerosas citações literárias, pictóricas e musicais.
A linguagem não é técnica, filológica e exegética, mas reflexiva. O presidente do Conselho Pontifício da Cultura nota com as palavras “Maria” são «marginais» nos textos evangélicos: 16 versículos com 154 palavras gregas (das quais 102 expressas no “Magnificat”), nas 19 404 do Evangelho de Lucas e nas 15 416 de João. Ravasi percorre-as “cronologicamente”, seguindo Maria no seu caminho de fé.
Se nos ativermos aos textos bíblicos, as frases de Maria são seis: duas na anunciação do arcanjo Gabriel, uma na visita a Isabel (o “Magnificat”), uma no reencontro do Filho no templo, entre os doutores, e duas nas bodas de Caná. Mas o autor acrescenta uma sétima: o silêncio assertivo da Virgem no calvário, quando Jesus a torna mãe da Igreja, naquele momento representada pelo discípulo João.
A primeira palavra (Lucas 1,34) é o pedido de clarificação da maneira como se vai realizar o plano de Deus dentro do projeto matrimonial de Maria. A expressão da plena disponibilidade da «serva do Senhor» encontra-se no versículo 38, como «servos de YHWH» tinham sito vários personagens do Antigo Testamento (maioritariamente homens), com grandes missões na história da salvação. Mas só aqui existe a expressão «a serva» de YHWH com o artigo, caso único na Bíblia.
À visitação, em que Maria é proclamada por Isabel como «a crente», segue a explosão do canto do “Magnificat”. À terceira palavra de Maria (Lucas 1,46-55) Ravasi dedica mais de 40 páginas, propondo uma análise literária geral, seguindo-se considerações versículo a versículo.
Ainda que se trate do fruto da piedade da comunidade primitiva, e entretecido por referências ao Antigo Testamento, o cântico condiz bem com Maria. Ela canta a graça imerecida de YHWH, a sua escolha paradoxal tendo em conta a pequenez da eleita, que, todavia, é uma constante na história da salvação, porque Deus escolhe instrumentos “frágeis” para realizar os seus planos.
No “Magnificat” canta-se a subversão da mentalidade humana típica. Os sete aoristos, empregados como um martelo, indicam a precisão do agir divino, que constitui também a maneira habitual da ação de Deus em relação à humanidade.
A busca dolorosa e penosa (Lucas 2,48) empreendida por Maria e José por Jesus, empenhado nas coisas do seu Pai, mostra a sua dificuldade em compreender a pessoa e o caminho do Filho de Deus, que, no entanto, será sempre acompanhado pelo afeto e fé deles.
Em Caná de Galileia (João 2,1-11), Maria realiza não tanto uma função providencial de solução do drama dos dois jovens noivos que ficaram sem vinho durante a festa, mas a de favorecer a instauração da nova aliança da Igreja-esposa (nunca nomeada) com o verdadeiro Esposo na celebração da abundância das bodas messiânicas.
Maria é convidada por Jesus a sair do plano das relações familiares e da busca de sinais prodigiosos para o da atuação da história da salvação, que vê em Caná o lançamento daquela Hora, que encontrão seu ápice no Gólgota. Nesse momento ocorrerá pela segunda vez o termo «mulher». Com o seu brusco «que coisa há entre mim e ti, ó mulher?», Jesus não se mostra distante em relação a Maria, mas com um fraseado tipicamente hebraico revela a diferente perspetiva de pontos de vista, e convida a mãe a ligar-se à sua.
Por seu lado, Maria convida com a sua sexta palavra os «diáconos» a fazer tudo aquilo que Jesus eventualmente dirá (João 2,5). Com isto o evangelista alude à função providencial de José no Egito e à vontade de Israel de escutar e realizar as dez palavras que YHWH concederá no deserto do Sinai durante a estipulação da primeira Aliança.
Debaixo da cruz (João 19,26-27) acontece uma cena de revelação-vocação-missão que não tende tanto a recordar à maneira de crónica um testamento filial e o confiar-se de Maria à proteção humana do discípulo amado, mas a sublinhar a revelação do rosto da Igreja-mãe que, no momento do abandono/afastamento de Jesus moribundo, se torna sempre fecunda de novos filhos. A mulher torna-se mãe fecunda de maneira nova (Apocalipse 12).
É uma palavra silente a sétima de Maria, debaixo da cruz. Expressa-se no seu estar de pé de maneira contínua e estável. “Stabat Mater dolorosa”, honrarão com piedade os autores numa infinidade de obras musicais a mãe que contempla o Filho, na constância de quem não foge, mas rehttps://www.snpcultura.org/as_sete_palavras_de_Maria.htmlcolhe o mandato do Filho de Deus.
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: "Cristo na cruz entre Maria e S. João" (det.) | Albrecht Altdorfer | C. 1512
Publicado em 26.06.2020
Comentários
Enviar um comentário