“Laudato si’” e Bem-comum

É interessante notar-se que, quando se fala de ecologia e dos danos causados pelos seres humanos sobre o planeta, único, que estes habitam, se proceda de um modo segundo o qual parece muitas vezes que o mal causado é fruto da ação de terceiros: «eles», «os outros». Ora, o discurso sobre a relação – boa ou má, benfazeja ou malfazeja – entre os seres humanos e o planeta tem de ser sempre assumido na primeira pessoa, individual ou colectiva. Na relação com o ambiente, é sempre um «eu» ou um «nós» que está em causa. O «eles» somos «nós» quando são «eles» que sobre «nós» falam. Sou mesmo eu quem age ecossistemicamente bem ou mal. Sempre eu.

Não há ser algum que ecossistemicamente não tenha importância em qualquer ecossistema, independente da dimensão do mesmo. Tal pode dizer-se do maior ecossistema que se conhece, o terrestre – aliás, salvo especulações, mais ou menos mágicas, é o único que se conhece.

Esta importância, sempre absoluta no que é, acontece porque cada ecossistema é apenas a interacção de todos os seus componentes constituintes. Percebe-se melhor o que está em causa, se, por absurdo, se começar a eliminar cada componente – precisamente por ser inimportante – e, concluída enumerativamente de forma exaustiva a tarefa, nenhum destes, em si mesmos inimportantes, elementos já fizer parte do ecossistema.

Todavia, não faz parte do ecossistema, porque, quando se eliminar o penúltimo, já não há ecossistema algum, mas apenas um elemento isolado, que não pode, por definição, constituir qualquer ecossistema.

Não compreender isto, é ser-se simplesmente estúpido e não constitui alternativa epistemológica alguma.



O modo de pensar segundo o qual há algo de errado em termos ontológicos no puro ecossistema como dom, na «natureza» como era costume dizer-se, é anticristão, por essência, pois implica imediatamente que Deus tenha criado um ecossistema em si mesmo marcado por um mal segundo o ser, o que faria de Deus, ele próprio, ou incompetente ou mau



O profundo sentido ecossistémico de Francisco, o Papa (título com inicial maiúscula), é profundamente digno do sentido criatural de Francisco, o Santo de Assis, porque, precisamente, assume a absoluta importância de cada elemento constitutivo do ecossistema. É uma questão de princípio. Não é uma questão de valor.

Por princípio, para um cristão, tudo o que Deus pôs como mundo – não é «no mundo», pois antes de Deus ter posto algo, não havia mundo algum – é, porque é dom de Deus, bom; intrinsecamente bom. Tal significa, para ambos os Fransciscos, que toda a criatura, como dom ontológico do criador, é ontologicamente boa.

Este é o princípio ontológico que funda e fundamenta a posição cristã sobre a criação, sobre isso a que agora se chama genericamente «ecossistema». De notar que este sentido ecossistémico universal ultrapassa em muito a mera restrição «Planeta Terra». Todavia, e, para já, felizmente, o poder de bem e de mal realizável pelos seres humanos sobre o que transcende fisicamente o seu imediato planeta é muito restrito e as ambições de exercício de tal poder, muitas delas, são simplesmente infantis, ridículas.

Tomando, então, o sentido restrito da ecossistémica antrópica, antropicamente manipulável, entende-se que, em termos cristãos, por princípio, o dom que constitui a base ontológica do ecossistema é divinamente bom, divinamente bom porque é dom de Deus.



Para um cristão sério, como Francisco, o medieval e o contemporâneo, o modo como nos relacionamos com o restante ecossistema é um caso de grandeza antropológica. É preciso ser-se antropologicamente muito grande para não ter medo de ir ao encontro do lobo e chamar-lhe «irmão»



Como é evidente, a dessacralização materialista, vária, quer do ecossistema quer da relação intra-ecossistémica entre o ser humano e o restante tem necessariamente consequências terríveis em termos de possibilidade e de concretização.

O modo de pensar segundo o qual há algo de errado em termos ontológicos no puro ecossistema como dom, na «natureza» como era costume dizer-se, é anticristão, por essência, pois implica imediatamente que Deus tenha criado um ecossistema em si mesmo marcado por um mal segundo o ser, o que faria de Deus, ele próprio, ou incompetente ou mau.

É, assim, fora do âmbito do cristianismo – mesmo que em máscara cultural cristã – que o sentido de uma ecossistémica fundamental má tem origem. Talvez como sucedeu com os deuses criados à imagem da humana realidade de bem e de mal concretos – forma há já muitos anos criticada por Xenófanes, filósofo pré-socrático –, a realidade ecossistémica seja afirmada como má por quem nela se projecta como é, nela se revendo como maldade ou nela buscando desculpa ontogénica para a sua maldade: se a natureza é má, que remédio tenho eu, parte dessa mesma natureza, senão ser mau. Note-se que boa parte de certas ciências ditas humanas funcionam segundo formas variegadas deste paradigma.

Para um cristão sério, como Francisco, o medieval e o contemporâneo, o modo como nos relacionamos com o restante ecossistema é um caso de grandeza antropológica. É preciso ser-se antropologicamente muito grande para não ter medo de ir ao encontro do lobo e chamar-lhe «irmão».



É preciso, amar, como dom, cada coisa (cada lobo) como Deus a ama, nesse amor o criando, nesse amor compossibilitando a comum vida: amor de dom, que é caridade; caridade que é criadora. Caridade que supre toda a insuficiente justiça com misericórdia



É, preciso, primeiro, não ter medo, ser corajoso; é preciso, também, agir de forma a que não se provoque em tal criatura reacções que ponham quem se aproxima num estado de perigo desnecessário – ecologicamente, o perigo é transcendental, isto é, está sempre presente –, quer dizer, ser temperante.

É preciso ser prudente como a ecológica serpente do Evangelho, para não ser bestial como a serpente do Génesis, assim se tornando sábio como uma pomba. É preciso esperar que a bondade que o criador pôs na criatura, perante os passos de paz de quem se aproxima por bem, se manifeste e o ser não reaja como besta, mas como imagem da acção de paz que se lhe patenteia.

É preciso que se acredite que tal é possível, em absoluto, porque se acredita que Deus é a ontogénese primeira de toda a ecossistémica; ter nisso porque se tem, como Job, na bondade inabalável de Deus.

É preciso, amar, como dom, cada coisa (cada lobo) como Deus a ama, nesse amor o criando, nesse amor compossibilitando a comum vida: amor de dom, que é caridade; caridade que é criadora. Caridade que supre toda a insuficiente justiça com misericórdia.

Então, tendo acabado de repassar em modo franciscano, de ontem e de hoje, as sete virtudes cristãs, percebe-se como é que se pode chamar «irmão» ao lobo.

Há que ter um olhar misericordioso sobre as criaturas, começando por si próprio como criatura, alargando tal olhar ao restante componente ecossistémico, isto é, a todo o acto que constitui o planeta Terra.



«A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo»



Impossível? De modo nenhum. Trabalhoso? Sem dúvida que sim. Difícil? Sumamente. Impossibilitador da continuação de uma atitude predatória que faz do ser humano que assim é a pior das bestas? Indubitavelmente.

No entanto, possível, bastando para tal a observância dos princípios que erguem ontologicamente o ecossistema, vertidos em componente humana no septenário das humanas virtudes.

No parágrafo 178 de Laudato si’, põe Francisco, o Papa, a seguinte afirmação fundamental e que pode resumir a estratégia da acção possível no sentido do bem para o ecossistema:

«A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo.»

A humanidade nunca conheceu senão tempos difíceis, pelo que a afirmação se aplica transcendentalmente a toda a história humana, sem restrição alguma.

O sentido positivo da afirmação é bem claro e encerra, por contraditoriedade, o que é a contrapartida caso não seja respeitado o princípio que põe: se não se tiver a grandeza – é sempre política, pois implica sempre uma relação do ser humano com algo que o transcende – de seguir o princípio do bem-comum estendido transcendentalmente à totalidade do ecossistema, este irá com tal conformar-se, isto é, arruinar-se-á.

Tal será também a ruina da humanidade, culpados e inocentes, segundo a inexorável lógica ecossistémica, apenas porque é ecossistémica, quer dizer, porque é um conjunto integrado de relações em que todas contam, em que tudo conta.

Sem magia, tal bem ou sua ausência está nas mãos de quem pode – e somos todos, segundo graus de poder diferenciados – fazer o bem pelo ecossistema ou não. A conclusão será inexoravelmente ecossistémica. É assim que a dita natureza funciona. Graças a Deus.


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: Mihailo K/Bigstock.com
Publicado em 29.05.2020

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