Gratuidade, sentido, beleza: nunca se esqueçam destas palavras, mesmo que pareçam inúteis, pede papa

O papa transmitiu esta sexta-feira uma vídeomensagem por ocasião de um encontro pela internet organizado pela Fundação Scholas Occurrentes. Francisco sublinhou a importância da resiliência nos períodos de crise, da tarefa educativa e do papel da gratuidade, sentido e beleza, recorrendo a um filme, uma pintura e um livro.

«Ainda recordo a origem: dois ensinantes, dois professores, no meio de uma crise, com um pouco de loucura e um pouco de intuição. Uma coisa não planeada, vivida à medida que ia caminhando.

Quando a crise, naquela época, deixava uma terra de violência, aquela educação reuniu os jovens gerando sentido e, portanto, gerando beleza.

Três imagens deste caminho vêm ao meu coração, que foram três imagens que guiaram três anos de reflexão e de encontro: o louco, de “A estrada”, de Fellini, “O chamamento de Mateus”, de Caravaggio, e “O idiota”, de Dostoiévski.

O Sentido – o louco –, o Chamamento – Mateus – e a Beleza.

As três histórias são a história de uma crise. E nas três, portanto, coloca-se em jogo a responsabilidade humana. Crise significa originalmente “rutura”, “corte”, “abertura”, “perigo”, mas também “oportunidade”.



A Scholas nasceu de uma crise, mas não ergueu os punhos para lutar com a cultura, e tão-pouco baixou os braços para resignar-se, nem saiu a chorar: Que calamidade, que tempos terríveis! Saiu a escutar o coração dos jovens, a cultivar a realidade nova



Quando as raízes precisam de espaço para continuar a crescer, o vaso acaba por romper-se. É que a vida é maior que a nossa própria vida, e, por isso, parte-se. Mas isso é a vida! Cresce, rompe-se.

Pobre da humanidade sem crises! Toda perfeita, toda ordenada, toda aperaltada. Pobre. Seria, pensemo-la, uma humanidade assim seria uma humanidade doente, muito doente. Graças a Deus que não é assim. Seria uma humanidade adormecida.

Por outro lado, assim como a crise nos funda por nos chamar aos espaços abertos, o perigo sucede quando não nos ensinam a relacionarmo-nos com essa abertura. Por isso as crises, se não são bem acompanhadas, são perigosas, porque a pessoa pode desorientar-se. E o conselho dos sábios, até para as pequenas crises pessoais, matrimoniais, sociais, é: «Nunca te adentres sozinho na crise, vai acompanhado».

Aí, na crise, invade-nos o medo, fechamo-nos como indivíduos, ou começamos a repetir o que a muito poucos convém, esvaziando-nos de sentido, cobrindo o próprio chamamento, perdendo a beleza. Isto é o que acontece quando alguém atravessa uma crise só, sem reservas. Esta beleza que, como dizia Dostoiévski, salvará o mundo.



Vi jovens de Israel a jogar com os da Palestina. Vi-o. Estudantes do Haiti a pensar com os do Dubai. Crianças de Moçambique a pintar com as de Portugal… Vi, entre Oriente e Ocidente, uma oliveira a criar cultura do encontro



A Scholas nasceu de uma crise, mas não ergueu os punhos para lutar com a cultura, e tão-pouco baixou os braços para resignar-se, nem saiu a chorar: Que calamidade, que tempos terríveis! Saiu a escutar o coração dos jovens, a cultivar a realidade nova. «Isto não está a funcionar? Vamos procurar noutro lugar».

Scholas assoma-se através das fissuras do mundo – não com a cabeça –, com todo o corpo, para ver se desde o aberto regressa outra resposta.

E isso é educar. A educação escuta, ou não educa. Se não escuta, não educa. A educação cria cultura, ou não educa. A educação ensina-nos a celebrar, ou não educa.

Alguém me pode dizer: «Mas como, educar não é saber coisas?». Não. Isso é saber. Mas educar é escutar, criar cultura, celebrar.

E desta maneira a Scholas foi crescendo.

Nem sequer estes dois loucos – os pais fundadores, podíamos dizer, rindo-nos – imaginavam que aquela experiência educativa na diocese de Buenos Aires, em apenas vinte anos cresceria como uma nova cultura, «poeticamente habitando esta terra», como nos ensinava Hölderlin. Escutando, criando e celebrando a vida. Essa nova cultura poeticamente habitando esta terra.



A educação escuta, ou não educa. Se não escuta, não educa. A educação cria cultura, ou não educa. A educação ensina-nos a celebrar, ou não educa. Alguém me pode dizer: «mas como, educar não é saber coisas?». Não. Isso é saber. Mas educar é escutar, criar cultura, celebrar



Harmonizando a linguagem do pensamento com os sentimentos e as ações. É o que vós me escutastes várias vezes: linguagem da cabeça, do coração e das mãos, sincronizados. Cabeça, coração e mãos a crescer harmoniosamente.

Eu vi, nas Scholas, professores e alunos japoneses dançando com colombianos. É impossível! Eu vi-o. Vi jovens de Israel a jogar com os da Palestina. Vi-o. Estudantes do Haiti a pensar com os do Dubai. Crianças de Moçambique a pintar com as de Portugal… Vi, entre Oriente e Ocidente, uma oliveira a criar cultura do encontro.

Por isso, nesta nova crise que a humanidade enfrenta hoje, onde a cultura demonstrou ter perdido a sua vitalidade, quero celebrar que a Scholas, como uma comunidade que educa, como uma intuição que cresce, abra as portas da Universidade do Sentido. Porque educar é buscar o sentido das coisas. É ensinar a buscar o sentido das coisas.

Reunindo o sonho das crianças e dos jovens com a experiência dos adultos e dos velhos. Esse encontro tem de dar-se sempre, senão não há humanidade, porque não há raízes, não há história, não há promessa, não há crescimento, não há sonhos, não há profecia.

Alunos de todas as realidades, línguas e crenças, porque ninguém fica de fora quando aquilo que se ensina não é uma coisa, mas a Vida. A mesma vida que nos origina e originará sempre outros mundos. Mundos diferentes, únicos, como também nós o somos. Nas nossas mais profundas dores, alegrias, desejos e nostalgias. Mundos de Gratuidade, de Sentido e de Beleza. “O idiota”, o “chamamento” de Caravaggio e o louco de “A estrada”.

Nunca se esqueçam destas últimas três palavras, gratuidade, sentido e beleza. Podem parecer inúteis, sobretudo hoje em dia. Quem se põe a fazer uma empresa buscando gratuidade, sentido e beleza? Não produz, não produz. E, no entanto, desta coisa que parece inútil depende a humanidade inteira, o futuro. (…)»


 

Papa Francisco
In Sala de Imprensa da Santa Sé
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: "La strada" (Fellini)
Publicado em 05.06.2020 | Atualizado em 06.06.2020

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