Naquela estrofe, que terá orientado um rosário de outras estrofes dedicadas à história sagrada que compôs o Credo de Israel, cintilava a primeira, e inesquecível, página da Bíblia, o célebre capítulo primeiro do Génesis, aberto por um lapidar «no princípio Deus criou…».
Trata-se de uma página curiosa na sua solene repetição, parecendo, hoje, elaborada quase por um computador, segundo um complexo esquema numérico: 7 dias nos quais afloram 8 obras divinas divididas em 2 grupos de 4; 7 fórmulas na base de toda a trama da narrativa; 7 retornos do verbo “bara”, “criar”; por 35 vezes (7x5) ressoa o nome de Deus; 21 vezes (7x3) entram em cena «Terra e Céu»; o primeiro versículo compõe-se de 7 palavras, e o segundo de 14 (7X2)…
Esta espécie de cabala, ritmada pelo 7 da semana litúrgica, número de plenitude, perfeição e harmonia, era destinada a celebrar a irrupção que no silêncio do nada e na treva do caos leva a efeito a Palavra divina criadora. Toda a Criação, com efeito, é sintetizada num vigoroso imperativo: «Seja a luz! E a luz foi».
Deus não cria o mundo através de uma luta primordial intradivina, como ensinava, as antigas cosmologias babilónicas através das quais Marduk, o deus criador vencedor, reduzia a pedaços a divindade negativa Tiamat, compondo com ela o universo. Dessa maneira, a Criação trazia em si, necessariamente e definitivamente, o estigma do mal e do limite por causa do deus do nada derrotado.
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Para a Bíblia, como dirá o evangelista João naquela obra-prima que é o prólogo ao seu Evangelho, «no princípio era a Palavra (o “Logos”)», o Verbo eficaz divino, e «tudo foi feito por meio dele». O horizonte criado é por isso contemplado pela fé judeo-cristã como uma obra-prima das mãos de Deus, ou melhor, dos seus lábios.
Por isso, Terra e Céu – para usar uma imagem do culto judaico sinagogal – são como um pergaminho desenrolado sobre o qual está inscrita uma mensagem revelada ao ser humano. Ou podemos pensar, com o poeta do Salmo 19, que no mundo corre uma música silenciosa, uma voz muda, um canal de escuta que ultrapassa o limiar auditivo, que, todavia, está aberto e é reconhecível a todos: «Os céus narram a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra das suas mãos; o dia ao dia confia a mensagem, a noite à noite transmite notícia, sem discursos, sem palavras, sem que se ouça som algum. E no entanto a sua voz expande-se por toda a Terra, até aos confins do mundo a sua Palavra!».
Noite e dia são quase como sentinelas que de guarita em guarita transmitem uma mensagem divina. No mesmo Salmo 19 é o Sol que, como um atleta ou um herói vigoroso, percorre a sua órbita diária tornando-se quase como que um arauto do seu Criador. No livrinho do profeta Baruc diz-se que «às estrelas que brilham alegremente nos seus postos, Ele chama-as e elas respondem: “Aqui estamos”. E, jubilosas, cintilam para o seu Criador (3,34-35).
O apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos, reiterará de maneira mais formal e essencial a ideia: «Da criação do mundo em diante, as perfeições invisíveis de Deus podem ser contempladas com o intelecto nas obras por Ele realizadas» (1,20). A par da revelação presente na Bíblia, existe uma outra Palavra divina, menos explícita e direta, mas que cada pessoa humana pode ler.
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A crise ambiental é também social
«Só se pode vencer a natureza obedecendo-lhe»: assim escrevia, já há séculos, o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). Este respeito foi desaparecendo, sobretudo nos nossos tempos, com o excesso de exploração dos recursos, a poluição industrial do ambiente, o desperdício incontrolado dos bens, a devastação na natureza, a urbanização selvagem.
Sugestivamente, Abraham Cowley, poeta inglês do século XVII, afirmava que «foi Deus a criar o primeiro jardim, e Caim a edificar a primeira cidade», como se lê, sobre esta, à qual deu o nome do seu filho, Henoc, no livro do Génesis (4,17).
Ao propor uma «ecologia integral», o papa Francisco, na “Laudato si’”, acentua que «não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise sócio-ambiental» (n. 139). É por isso que o tema da sustentabilidade envolve não só os cientistas e os políticos, mas também as religiões, a partir da bíblica, que é histórico-cósmica.
Com efeito, o universo é visto como uma criação, e a história humana compreende também a presença ativa de Deus junto à liberdade humana. O progresso da civilização deve ser sustentável para que todos possam satisfazer as exigências fundamentais da vida e realizar aspirações e projetos da existência humana.
É por isso que, a par dos direitos civis e políticos, e dos económicos, sociais, culturais – presentes já na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), se deve colocar toda uma série de novos direitos, como o equilíbrio ecológico, a defesa ambiental e dos recursos naturais, até às questões mais específicas das manipulações genéticas e da bioética.
Na sua encíclica «sobre o cuidado da casa comum», o papa Francisco solicita «uma criatividade capaz de fazer reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais dignificante usar a inteligência, com audácia e responsabilidade, para encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, no quadro duma conceção mais ampla da qualidade de vida» (n. 192).
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Famiglia Cristiana (1) (2)
Trad.: Rui Jorge Martins
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Publicado em 05.06.2020
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