Há alguns anos, durante o pontificado do papa Bento XVI, o padre-geral dos Jesuítas Adolfo Nicolás (1936-2020) esboçou pontos para uma possível carta para a Companhia de Jesus. Ainda que nunca a tenha redigido, partilhou esses tópicos com alguns amigos. O texto seguinte, ainda que improvisado e informal, expressa claramente a direção do seu pensamento. Com a permissão do P. Nicolás, partilhamo-lo agora.
Durante algum tempo, nós, como religiosos, temo-nos perguntado sobre a nossa vida na Igreja e o poder e a atração do nosso testemunho. Não é necessária uma visão extraordinária ou uma análise profunda para se dar conta de que o que chamamos “vida religiosa” perdeu algo do seu impacto na Igreja e fora dos seus muros. Seguramente, isto não é universal. Alguns grupos de religiosos mantiveram, e inclusive aumentaram a sua credibilidade pela autenticidade da sua vida, o seu serviço aos pobres ou a profundidade da sua oração. No entanto, as perguntas persistem. O que perdemos? Onde é que nos equivocámos? Entendemos mal o nosso chamamento à renovação? Estamos sem rumo?
Os clássicos como modelos
Tenho estado a reler alguns dos clássicos da vida religiosa: Inácio de Loyola, Francisco Xavier, João da Cruz, Teresa de Ávila. Achei-os mais refrescantes para o coração. É como regressar novamente à casa das origens, ao primeiro amor, a quando pensei pela primeira vez que havia pelo qual valia a pena dar toda a minha vida. E depois perguntei-me: o que é estava tão presente neles e que parece termos perdido? Creio que é o seu centramento total. Tinham sido apanhados pelo Espírito, o fogo, a vida e o estilo de Cristo, e aí permaneceram, totalmente centrados, explorando as suas profundidades, reconstruindo toda a sua vida em torno a este novo centro. Tocaram profundamente esta experiência, viveram tudo a partir dela, queimando-se com ela, partilhando o fogo e a luz com os outros. Tornaram-se luminosos para gerações de pessoas que buscavam as mesmas profundidades ou se surpreendiam pela existência de tais profundidades. Estes “clássicos” (à falta de um termo melhor) estavam totalmente centrados. Ao lado destes santos, parecemos estar enormemente – se me permitem a expressão – estupidamente “distraídos”.
Sobre isto quero partilhar algumas reflexões. Há que ter em conta que não escrevo como um dos clássicos. Eles sabiam acerca de Deus e escreveram sobre como entrar profundamente na vida de Deus. Conheço as distrações – sou quase um perito nelas – e escreverei do que sei.
Do “distrair-se na oração” ao “distrair-se na vida”
As distrações durante o tempo de oração foram uma grande preocupação nos primeiros anos da minha vida religiosa. Quando naqueles noviciados isolados, quase ocultos, do antigamente, buscávamos nas nossas vidas algo que dizer nas confissões semanais, as distrações na oração salvavam-nos sempre. Levou-me muitos anos de luta e fracasso dar-me conta de que a minha verdadeira distração estava na minha vida, não na minha oração. Estava distraído em quase todas as áreas da vida, o trabalho ou o estudo. Não é de estranhar que a minha oração sofresse o mesmo mal-estar. Como poderia centrar-me na oração, quando a minha mente e o meu coração estavam distraídos com tantas coisas?
Esta compreensão abriu-me de par em par uma porta para a consciência e para um dos meios de oração inacianos mais tradicionais: o exame. Eu, como muitos dos meus amigos na vida religiosa, não era uma má pessoa. Éramos companheiros decentes, esforçando-nos o mais possível por fazer bel o que nos pediam que fizéssemos, desde a oração até ao ensino, jogar futebol e ajudar na liturgia da Semana Santa.
Inclusive, cantávamos bem. Mas estávamos “distraídos”. Posso ver isso depois de reler os nossos Mestres, os Clássicos.
As tentações fáceis para distrair-se
Há que ter em conta, por favor, que não quero culpar ninguém pessoalmente. Se estávamos distraídos era porque as distrações nos rodeavam. No geral, eram as distrações de “sentido comum” de qualquer comunidade humana. A maioria das vezes, estas distrações fazem tanto parte do “sentido comum” que, se não as aceitas, és considerado estranho, pouco fiável, por vezes, inclusive, traiçoeiramente desleal ao grupo. Incluiria aqui todos os fatores que pertencem a grupos sociais, étnicos ou culturais. Infelizmente, não é difícil encontrar religiosos profundamente involucrados em tais grupos, que projetaram sobre eles ou sobre causas” limitadas todo o idealismo da sua juventude, para terminar convertendo-se em líderes de interesses sociais, étnicos ou culturais muito limitados. E esta é uma grande distração, algo que nunca vi em nenhum dos “clássicos”.
Outra das tentações “fáceis” é a identificação emocional com grupos que sofrem algum género de complexo. Estou a pensar agora em grupos que, no passado, sofreram opressão ou injustiça, e agora usam essa autêntica má experiência como razão para reclamar um estatuto de “vítima” eterna. Por vezes, os grupos que foram marginalizados no passado podem usar isto como alavanca para viver numa situação privilegiada para sempre. Dado que as pessoas consagradas têm, geralmente, bom coração, são propensas a esta distração.
Por outras palavras, as pessoas religiosas que querem representar o Evangelho de Jesus Cristo tendem a ser débeis frente às ideologias e ao pensamento ideológico. Temos dificuldades com as ambiguidades e as áreas pardas da realidade. Dado que estamos capacitados para um compromisso total, projetamos facilmente a verdade total sobre qualquer compromisso a que nos sentimos chamados, e tornamo-nos cegos aos cambiantes, às ambiguidades e, inclusive, às contradições de uma cosmovisão “a preto e branco”. Durante um bom número de anos, estivemos divididos nas nossas congregações religiosas – inclusive a nossa Companhia – entre aqueles do setor social e os da educação; entre os que servem aos pobres e os que servem a elite. Justificamos – ou tratamos de justificar – as escolhas teologicamente, sem nos darmos contra de que se tratava, realmente, de uma operação ideológica. Que distração! Nem sempre entendemos que uma opção preferencial pelos pobres era uma opção por amor, desde o coração, desde dentro, como quando Jesus sentiu compaixão pelas multidões pobres. Uma opção pelos pobres não se pode “exigir” aos outros, porque tem de vir do coração. Sem esta importante ideia, traduzimos “opção preferencial” por “obrigação moral”, e sentimo-nos justificar a exigir isto a todos, sob a ameaça de os considerar menos cristãos, menos comprometidos, menos evangélicos. Quando levamos isto ao extremo, nem sequer os podemos tratar como irmãos ou irmãs; são traidores à causa do Evangelho.
O perfecionismo como distração narcisista
No entanto, não se deve pensar que todas as distrações provêm do exterior. Pelo menos uma provém dessa busca muito religiosa de bondade, obediência a Deus e crescimento espiritual. Chamámo-la “perfecionismo”, e pintámo-lo com diferentes cores em diferentes idades e contextos. É uma velha distração, mas foi sempre mortal para a visão religiosa e para a vida. S. Paulo, juntamente com os primeiros cristãos, ao reagir a excessos muito particulares e visíveis de alguns grupos profundamente comprometidos, chamou-o de “farisaísmo”. Encontrámo-lo e entretivemo-nos com ele através dos séculos; e sempre sentimos que não foi um problema só para o tempo dos apóstolos, mas que foi uma tentação, uma verdadeira distração, para todos em todos os tempos.
A psicologia moderna presta muita atenção ao fenómeno de especial preocupação por si mesmo, pela própria imagem, pelas aparências ou pela perceção dos outros. Alguns chamam-no “narcisismo”. Certamente ajusta-se ao tipo de distrações com as quais estamos a lidar. Estamos distraídos, paradoxalmente, pelo nosso próprio impulso para a perfeição. Aqui os clássicos dão uma grande ajuda. Estes homens e mulheres seguiram a Cristo incondicionalmente na sua “kenosis”, o seu esvaziamento, e, portanto, não estavam distraídos por nada do eu que pudesse interpor-se no caminho. Inclusive, usaram uma linguagem que era logicamente “excessiva” para expressar a totalidade da sua concentração (…).
A distração perfecionista pode ser muito subtil para nós, os Jesuítas. Não é difícil detetá-la (e com mais ou menos alarme!) em mim mesmo ou noutra pessoa, mas é mais difícil de identificar no grupo ou na instituição em que trabalhamos. A distração básica complica-se ainda mais por “distrações anexas”, como a competência, a necessidade compulsiva de estar em dia com a tecnologia, ter equipamentos eletrónicos, usar novas possibilidades de comunicação, etc. A instituição pode tender a fazer do “perfecionismo” a norma para um progresso medível e a garantia de um futuro num mundo de mercados difíceis. Não é de estranhar que, exceto durante as solenidades da Semana Santa, nunca celebremos o “fracasso do Reino de Deus” ao seguir Cristo. Em contrapartida, sempre e só celebramos o êxito. Não contribuirá isto para nos mantermos distraídos com as decisões equivocadas?
O ego como distração número um
Obviamente, a distração maior e central é o eu. O nosso ego nunca descansa, e atrairá sempre a nossa atenção para si mesmo. Sem ser necessário retirar importância ao papel dos “agentes espirituais” – bons ou maus –, podemos dizer com segurança que o ego é a maior fonte de distrações ao longo da nossa viagem pela vida.
A distração ocorre quando o foco das nossas mentes e corações está fora do lugar. Experimentar contradições ou dificuldades – por vezes, inclusive, sérias – faz parte de viver e comunicar o Evangelho. A pessoa verdadeiramente espiritual vive esta experiência com uma enorme liberdade interior que a conduz a uma intimidade mais próxima com Deus, com a verdade e com os pequenos, que são os verdadeiros especialistas em sofrimento. Aqueles que são menos espirituais sofrem dificuldades e veem-nas todas como um complô contra o eu. Sentem-se perseguidos e, naturalmente, perdem a sua paz interior e alegria. Centar-se no eu incompreendido ou ferido acaba por ser uma distração gigantesca.
Um processo semelhante ocorre quando o nosso foco na tomada de decisões não está na vontade de Deus, que nunca posso controlar ou dirigir, mas na opinião de outros, quer seja alguma opinião mantida popularmente, quer se trate da opinião daqueles de que gostamos, amamos ou admiramos. Isto é o que eu chamaria de “distração de popularidade”, e provém de mudar o lugar e o processo da nossa tomada de decisões do amplo e nunca controlado processo de discernimento, para a dinâmica mais fácil dos sentimentos e ações grupais, inclusive de pessoas santas e honoráveis.
Também ocorre quando os nossos horizontes humanos e espirituais se reduzem. A forma mais comum em que isto sucede é, obviamente, quando nos enamoramos das nossas próprias opiniões, especialmente se pensamos que elas são inteligentes, as melhores de todas. Podemos estar tão distraídos pelas nossas próprias opiniões, que, se as enumerássemos, nunca terminaríamos. Quando Santo Inácio oferece às pessoas que terminam os Exercícios Espirituais algumas regras para ter os sentimentos e atitudes corretas na Igreja, está a tratar de as ajudar a libertar-se desta distração de horizontes estreitos. As palavras soam duras e difíceis de aceitar, mas aquilo que o santo queria era liberdade, abertura a algo maior do que umas poucas ideias, ainda que sejam as minhas.
A importância desta liberdade torna-se evidente se, em lugar de opiniões pessoais, falamos de ideologias e opções ideológicas. Quantas decisões pessoais, ou inclusive grupais, descritas como o resultado do discernimento individual ou comunitário, são, na realidade, apenas escolhas ideológicas, disfarçadas com a linguagem do discernimento, mas que provêm de um processo que só na forma se assemelha ao verdadeiro discernimento? Nesses casos, inclusive a teologia funciona como uma ferramenta para os interesses ideológicos, e converte-se numa distração.
A distração do ego é mais poderosa quando a comunidade, ou a relação espiritual com a comunidade, se desvanece ou desaparece. Nós, pessoas consagradas, comprometemo-nos a encontrar a vontade de Deus juntos, como um corpo, uma comunidade de fé, missão e amor. Aqui encontramos o verdadeiro significado da obediência, esse voto dos religiosos que com frequência é mal entendido. A má notícia é que isto é muito difícil, particularmente para os mais visionários, os mais inteligentes, os mais dedicados a uma ou outra causa importante. É sempre muito mais fácil ir só, com inspiração pessoal (principalmente mental ou emocional). Por estranho que pareça, é mais fácil chamar-se profeta do que discernir com os demais e ter que lidar humildemente com as debilidades do nosso pensamento ou as nossas sugestões. Podemos converter-nos em profetas fora da comunidade, até que as pessoas com autoridade queiram silenciar-nos, e logo corremos para a comunidade em busca de proteção, inclusive, por vezes, culpando a comunidade ou os seus líderes por falta de compreensão, coragem, visão e apoio. Não há má vontade deliberada. Há muitos bom desejos, muita visão, grande determinação para marcar a diferença… mas, não obstante, estamos distraídos!
Distrações dos meios e do mercado: equipamentos, internet…
Estas distrações são as mais comuns e as mais fáceis de detetar. Estão mesmo à frente de todos nós, e poucos de nós poderíamos reclamar imunidade total ou parcial diante delas. Por isso, não são as mais perigosas. Certamente, necessitamos destes meios e alguns dos equipamentos. Esta não é a pergunta. Mas, porque sentimos que somos, de alguma maneira, inferiores se não estamos atualizados neles? Porque nos sentimos tão mal sendo diferentes? Porque é tão importante para nós ser aceites, ser parte da equipa?
Talvez continuemos distraídos porque já não decidimos. Permitimos que os meios definam uma nova ortodoxia, um novo cânone” de verdade, que já não é a verdade, mas uma opinião pública intencionalmente construída e acrítica. A forma com que se desenvolve a nova cultura da informação confronta-nos com opções básicas. Queremos informação ou compreensão? Velocidade ou profundidade? Centrar-se em Cristo ou navegar pela internet? Sei que estas não são opções exclusivas, e nenhum de nós sonharia considera-las assim, mas podem tornar-se tão reais na nossa vida não atenta como qualquer outra distração.
Distrações da superficialidade no âmbito religioso
Estas são distrações que nos afetam particularmente, aos Jesuítas, dada a nossa ampla formação intelectual. Afetam-nos quando o nosso crescimento intelectual não termina em oração, adoração, ministério. São particularmente inquietantes porque acontecem dentro da Igreja e dentro da sua vida de fé. Tendemos a pensar que o que não encaixa com as minhas teorias não tem significado; que se não posso encontrar o “sentido”, é um “sem-sentido”. E somos bastante intolerantes com os disparates. Logo, adotamos a típica postura imatura do “tudo ou nada”, convencendo-nos de que “se não estou de acordo, não tem sentido”. Santo Inácio saiu desta tendência com as suas regras para sentir com a Igreja. Não o preocupava o que tinha sentido para ela, mas o que tinha sentido para as pessoas, as pessoas simples do seu tempo, os fiéis simples na Igreja. Tendemos, por vezes, a alardear: “Nunca elogio o que não me agrada”. Inácio diz-nos para louvarmos tudo o que ajuda as pessoas na sua devoção, oração, sentimento de proximidade com Deus e a sua Igreja. As suas regras têm uma forte coloração e foco pastoral. Nelas, Inácio diz-nos que não nos distraíamos com nós mesmos, com as nossas ideias, nossos gostos ou desgostos, nossas opiniões e teologias, mas que consideremos as pessoas caminhando e vivendo na presença de Deus. Esquece-te de ti mesmo e defende a vida destas pessoas.
Os grandes jesuítas parecem-me homens de uma só peça: inteiros, dedicados, consistentes, bem orientados, e não distraídos no maximamente mínimo. Um olhar mais atento à nossa história jesuíta pode ajudar-nos. Todos estamos muito orgulhosos, e com razão, da nossa história e dos grandes nomes que a enchem. Quando os olho a partir da perspetiva das nossas distrações, o que me surpreende em todos eles é a sua total dedicação à sua vocação e missão. São pessoas que deram tudo e permaneceram bem orientadas para o objetivo final da sua autodoação: Deus e o serviço do seu Reino. Levaria demasiado tempo desenvolver como cada um deles realizou este compromisso totalmente concentrado. Recordemos alguns nomes, a que se poderiam acrescentar muitos outros:
- Os fundadores: Inácio, Xavier Fabro…
- Os criadores: Anchieta, Vieira, Castiglione, Pozzo…
- Os pioneiros: Ricci, De Nobili, Brebeuf, Teilhard, Arrupe…
- Os místicos: Inácio, Xaviver, Colombière, Teilhard…
A recordação destes homens parece-me um convite para ir ao centro; o centro em Deus e o centro de nós mesmos, e a nossa vocação na Companhia e na Igreja. A vocação e a missão que recebemos do Senhor e que herdámos dos nossos predecessores não permitem seguidores ou servidores “distraídos”. O Senhor continua a chamar irmãos e amigos para que sigam o seu Filho, pessoas que estão dispostas a dar tudo pelo seu sonho de salvação para toda a humanidade. A tarefa continua a ser tão imensa e desafiante como sempre. A reposta, também, deve ser total, concentrada, tão centrada como sempre, ou inclusive mais, porque estamos a começar a compreender que o plano de Deus foi sempre um plano para o universo, e não só para a família humana. A presença de Deus em toda a criação está a redefinir a nossa missão com os ecos do Génesis e de Paulo, renovados nos recentes chamamentos do Santo Padre o papa Bento XVI. Uma vez mais, escutamos Inácio recordar-nos que aqueles que queiram distinguir-se no serviço de um tal Senhor oferecerão toda a sua vida ao trabalho.
Esta é a oração que acompanha esta carta: que todos respondamos de novo ao chamamento incessante de nosso Senhor Jesus pelo bem da Igreja, da humanidade e do universo.
In La Civiltà Cattolica
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: VictoriaDunn/Bigstock.com
Publicado em 02.06.2020
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