Corpo de Deus: Deixemo-nos (sempre) Surpreender

«Surpreende-me!» (1)

«Não tenhais medo!» (2)

Creio ter encontrado nestas duas afirmações, e no contexto em que as mesmas foram proferidas, uma boa síntese da minha reflexão sobre o profundo sentido e viver da celebração da Liturgia Cristã, que tão solenemente experienciamos neste dia do Corpo de Deus, Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.

Surpreende-me!, diz Anton Ego (o crítico gastronómico) ao rato Remy (o genial cozinheiro), numa resposta que demonstra a sua total confiança naquele que o servia. Que poderia o transformado Anton Ego pedir que superasse a dimensão de se sentir (bem) surpreendido? Surpreender e deixar-se surpreender, por vezes na redescoberta simples do que já sabíamos e já experimentámos, mas que entretanto esquecemos… Surpreende-me!: será também esta a expectativa e atitude com que nos apresentamos para viver cada celebração Eucarística? Que porta escolhemos para nela entrar? Que tipo de Anton Ego queremos ser? O primeiro ou o transformado?

Reflito aqui no primeiro Anton Ego como imagem daquele em que tantas vezes nos tornamos quando celebramos como Igreja. E sim, também na Eucaristia: arrogantes na exigência, críticos do que não fazemos, distantes, só clientes. Não terão, hoje, os crentes das nossas assembleias litúrgicas sido substituídos por Anton Egos? Se sim, então, evangelizadores, Não tenhais medo!, os Anton Egos esperam ser surpreendidos, precisam ser surpreendidos. É que só sendo surpreendidos seremos capazes de recuperar a essência e verdade, a beleza, sentir o coração pulsante da Eucaristia e de corretamente interpretar e saborear toda a sua ritualidade. E, pessoalmente, afirmo-o: o facto de ter feito o percurso do estudo do sagrado mistério da Eucaristia, ter estudado a génese e significados dos seus ritos, e em particular da teologia e espiritualidade da longa tradição anafórica da Igreja, foi para mim um momento transformacional que me (re)ensinou a saborear a simplicidade e profundidade da celebração Eucarística, a saboreá-la repetidamente com o sentimento de Surpreende-me!.



Quando a Eucaristia se tornar transparente aos olhos de quem a vive, quando a Eucaristia for capaz de voltar a trazer para primeiro plano as marcas de Deus em si, de revelar o rosto maternal de Deus, nesse momento ao crente só restará, como ao Anton Ego transformado, saboreá la repetidamente e dizer: Surpreende-me!



Mas voltemos ao primeiro Anton Ego. Num momento que se revelou transformacional foi-lhe servida uma refeição considerada simples: tão simples e tão aparentemente passado que ele já havia esquecido, que ele era incapaz de lembrar. Mas foi pela sua simplicidade, pelo facto de ter sido bem feito, com sentimento, vida e memória, que Anton Ego se sentiu transformado, transportado para a sua infância, tirado de si, arrancado para o melhor de si e das suas memórias. Anton Ego foi abalado; os seus sentimentos misturam-se; era a saudade das memórias da mãe, da comida das origens, que lhe provocava tanto desprezo pela comida dos outros, e pelos outros. Nada o satisfazia.

Anton Ego é aqui utilizado como modelo do crente atual, do “consumidor” de Eucaristias, que entra altivo e sai apressado, que não sabe o que quer ou o que procura mas sabe que não é isso, sempre pronto a criticar sem construir. E, tal como Anton Ego, o crente que ama e ainda acredita, que continua à procura, tem que ser conduzido ao seu momento transformacional, conduzido ao encontro da simplicidade do sabor de Cristo, a descobrir em si o rastro e marca que Deus lhe deixou ao longo da sua vida, e que por vezes mora tão fundo e tão longe das suas superficiais memórias. Depois do percurso feito pela Liturgia Cristã, convictamente acredito que só a Eucaristia pode constituir este momento transformacional, e que todos têm o direito de fazer esta experiência verdadeira de Cristo na Eucaristia, e estudando-a descobrir a porta pela qual cada um quer nela entrar. E quando a Eucaristia se tornar transparente aos olhos de quem a vive, quando a Eucaristia for capaz de voltar a trazer para primeiro plano as marcas de Deus em si, de revelar o rosto maternal de Deus, nesse momento ao crente só restará, como ao Anton Ego transformado, saboreá‑la repetidamente e dizer: Surpreende-me!. E como Deus habita o detalhe, será na descoberta progressiva de cada detalhe da Eucaristia, dos ritos, da bela tradição anafórica, de cada palavra, de cada gesto, que o crente, eu, se deixará surpreender pelo que vai redescobrindo e reaprendendo.



Se a Eucaristia não é capaz de despertar em cada um que a vive e celebra o rasto que Deus deixa no mais íntimo de si, a Liturgia não está a cumprir a sua missão



Entre o primeiro momento, em que a pessoa se descobre surpreendida, e aquela em que a pessoa procura e quer ser surpreendida, há um pequeno passo que reflete uma mudança substancial na atitude da pessoa perante tudo. Não é destes cristãos que a Igreja se quer constituir? Dos que procuram a surpresa, ou dos que nem sabem que querem ser surpreendidos? Pois também a Liturgia tem que ir buscar ao mais fundo de cada um os rastos que Deus foi deixando impressos nos seus corações. Isto implica um contacto continuado, apaixonado, demorado, fiel, que só os evangelizadores podem conseguir. E a segunda frase desta reflexão é para todos os evangelizadores, pastores da Igreja: Não tenhais medo!, não tenhamos medo! São palavras e conselho de S. João Paulo II, tão atual hoje como há quase 42 anos:

«Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo! Ao seu poder salvador. (…) Não tenhais medo! Cristo sabe “o que está dentro do Homem”. Só Ele o sabe!... Eu vos peço, eu vos imploro (...), permiti a Cristo falar ao Homem. Somente Ele tem palavras de Vida, de Vida Eterna!» (3).

Há muita gente à vossa espera, pois a vós cabe permitir a Cristo falar ao Homem. Hälik escreveu recentemente que as Igrejas estão vazias, ou preenchidas de gente vazia. Cheias de Anton Egos, arrisco eu. Hälik deixa-nos a pergunta: como falar de Deus a quem é indiferente, a quem é distante, crítico? Eu acrescento: será que os devemos procurar pela barriga, e levá-los a ceder como Anton Ego? A figura de Anton Ego é aqui utilizada como exemplo de que Deus desarma qualquer coração de pedra… e transforma o em coração de carne… Dizia-lhe Linguini: “Se quer conhecer o chefe, terá que esperar até que todos os outros saiam…”. E ele ficou, ficou… esperou, esperou… pois valia muito a pena. Há momentos que nos transformam. Que valem a pena. Pelos quais vale definitivamente a pena esperar.

E se esta missão de surpreender o Homem não é cumprida pela Liturgia, e pela Eucaristia em particular, de que outra forma podemos permitir a Cristo falar ao Homem? Se a Eucaristia não é capaz de despertar em cada um que a vive e celebra o rasto que Deus deixa no mais íntimo de si, a Liturgia não está a cumprir a sua missão. Não tenhais medo! Temos uma importante missão pela frente. Re(aprender) Liturgia fez me sentir como Anton Ego, o transformado, capaz de se sentir deliciado ao saborear repetidamente coisas simples, e desejar a surpresa da descoberta da beleza da imensa tradição anafórica da Igreja.

Será que nos temos deixado (ou queremos deixar) surpreender nas celebrações Eucarísticas, e nelas entramos como o Anton Ego transformado que espera e diz: Surpreende-me!? Deixemo-nos (sempre) Surpreender. É mesmo só assim que FazSentido (4)!


(1) Disney-Pixar, Ratatouille, 2007 (https://www.pixar.com/feature-films/ratatouille): diálogo final da última cena entre o crítico gastronómico Anton Ego e o rato genial cozinheiro Remy.
(2) João Paulo II, AAS 70 (1978), 22 outubro 1978: homília de S. João Paulo II na liturgia solene de entronização.
(3) João Paulo II, AAS 70 (1978), 22 outubro 1978, ver https://www.youtube.com/watch?v=QVfEC9OXPH8: «Non abbiate paura! Buon divertimento, anzi, spalancate le porte a Cristo! Alla Your salvatrice potestà aprite i confini degli Stati, i sistemi economici come quelli politici, i vasti campi di cultura, dalla civiltà, dallo sviluppo. Non abbiate paura! Cristo sa è dentro la lomo ». Solo Lui lo sa!»
(4) Porque tem que fazer sentido, http://www.fazsentido.pt/ .


 

José Luís de Carvalho Martins Alves
Imagem: P. Joaquim Félix
Publicado em 09.06.2020

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