«Black lives matter»: Para que a Eucaristia seja consequente e o cristianismo não seja letra morta

Julgo que, às vezes, podemos cair na armadilha de pensar que o cristianismo é uma religião de letra morta. Que é sobre coisas que aconteceram há muito tempo ou sobre palavras numa página.

Mas todos os dias, na missa, quando me ajoelho diante de Jesus na Eucaristia, sou lembrado de que Ele está vivo e presente. Que o cristianismo é um evento que está a acontecer agora mesmo. O drama da salvação é algo que ocorre todos os dias. E todos temos um papel a desempenhar.

Ensinei liturgia no seminário. Na boa liturgia, a nossa fé é trazida à vida. Penso que o que temos visto acontecer nos últimos dois dias talvez seja um pouco como a liturgia.

Noutro dia, vi um vídeo de uma jovem branca, num protesto perto da Casa Branca, que colocou o seu corpo à frente de um jovem adolescente negro ajoelhado quando os polícias, envergando equipamento contra tumultos, se aproximaram. Como Jesus disse: «Ninguém tem mais amor que isto, dar a vida pelos amigos».

É uma cena de solidariedade e doação que aconteceu em todo o país [EUA] tantas vezes na última semana. Em El Paso, Texas, houve dois jovens polícias que se ajoelharam com os participantes numa manifestação, e isso ajudou a aliviar alguma tensão.

Há algo profundamente eucarístico nestes momentos, e eu sou muito inspirado pelos nossos jovens. Estão a ensinar-nos algo.



O meu irmão bispo em Chicago, cardeal Blase Cupich, sugeriu que deveríamos ser menos rápidos a julgar a proporcionalidade da resposta "deles" e começar a falar sobre a proporcionalidade da "nossa". Também precisamos de lembrar o que o Dr. Martin Luther King Jr. disse: «Uma revolta é a linguagem dos que não são escutados»



Quando a religião se torna estagnada, podemos esquecer que a Palavra chega sempre até nós crucificada e impotente. Na América, a Palavra vem torturada, negra e linchada. Hoje, encontramos Jesus naqueles que apanharam com gás gaseados, foram atingidos por “tasers”, cheios de tarefas, estrangulados e abafados. É esta a razão pela qual a Igreja ensina uma opção preferencial para os pobres. E é por isso pela qual Igreja defende a vida onde e quando é desvalorizada e ameaçada.

Dizer, como todos os que comem da mesa da Eucaristia devem ser capazes de dizer, que a vida dos negros importa [“black lives matter”] é apenas outra maneira de repetir algo que nós, nos EUA, parecemos tantas vezes esquecer, que Deus tem um amor especial pelos esquecidos e oprimidos.

Muitos estão compreensivelmente perturbados com a destruição e os saques. É verdade, nenhum de nós deve ansiar pela excitação da violência ou da vingança. É errado. Também precisamos de reconhecer que estamos a ver os efeitos manifestos de séculos de pecado, violência e direitos negados. E, francamente, os direitos civis não são suficientes. É o mínimo, e, claramente, ainda não chegámos lá. Também precisamos de construir uma sociedade com habitação, educação, assistência médica e salários justos para todos, bem como o direito de migrar. E então podemos começar a curar.

O meu irmão bispo em Chicago, cardeal Blase Cupich, sugeriu que deveríamos ser menos rápidos a julgar a proporcionalidade da resposta "deles" e começar a falar sobre a proporcionalidade da "nossa". Também precisamos de lembrar o que o Dr. Martin Luther King Jr. disse: «Uma revolta é a linguagem dos que não são escutados».



Eles estão a mostrar-nos a que se assemelha o Reino de Deus, e como o nosso país pode parecer quando todos tivermos um lugar à mesa. Vamos encorajá-los. E rezar com eles. E agradecer-lhes



Penso que os líderes da Igreja, hoje, e, na verdade, os líderes em todo o lado, talvez devessem dizer agora um pouco menos. Em vez disso, devíamos ficar, e dar o microfone, e ouvir aqueles que há demasiado tempo não são escutados. Aqueles que sofreram a nossa vergonhosa história de discriminação, “perfilamento” racial e brutalidade policial. Aqueles que estão a pôr os seus corpos em risco em protesto e em defesa de outros.

Olhemos para a graça em tudo isto. Olhar para o testemunho daqueles que estão corajosamente a assumir a sua parte no drama da salvação que está a desenrolar-se à nossa frente. Se olharmos além da estática, eles estão a apontar o caminho para a transformação redentora. Eles estão a mostrar-nos a que se assemelha o Reino de Deus, e como o nosso país pode parecer quando todos tivermos um lugar à mesa. Vamos encorajá-los. E rezar com eles. E agradecer-lhes.

Com graça, eles estão a juntar-se às fileiras vivas de uma longa tradição de fé de operários por maior justiça, como Moisés, Jesus de Nazaré, Joana d'Arc, Harriet Beecher Stowe, James Earl Chaney, Oscar Romero, Thea Bowman e muitos outros. Graças a Deus. Graças a Deus.


 

D. Mark J. Seitz
Bispo de El Paso, EUA
In National Catholic Reporter
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D. Mark Seitz | El Paso's Memorial Park | 01.06.2020 | CNS/El Paso Diocese/Fernie Ceniceros
Publicado em 05.06.2020

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