Uma Via-sacra da pandemia

Esta Via-sacra é, ao mesmo tempo, um texto de ficção e um pequeno ensaio teológico em que Jesus Cristo percorre todas as etapas de um infetado com covid-19. A densidade espiritual é fortíssima e representa, mesmo na sua estranheza, um modo eficaz de dizer como a solidariedade redentora de Jesus acompanha o Ser Humano, qualquer que seja a situação em que este se encontre. O autor desta Via-sacra – que será esta semana editada em e-book, por uma editora italiana - é o teólogo Padre Alexandre Palma, docente na Universidade Católica Portuguesa.



Primeira estação: Jesus tem sintomas
Foi mais um dia intenso. Muito andar. Muito conversar. Encontros variados. Uns pessoais, tu a tu. Outros não tanto. Reuniões com estranhos e conhecidos. Uns vindo de perto, outros chegados de longe. Anoiteceu. Chegou, enfim, a hora do silêncio. Saio da cidade e entro no recolhimento possível. «Descansa agora um pouco», ouço-me dizer.
Mas algo não está bem. Sinto um incómodo vago. Não é uma certeza. É uma dúvida chata. Não é nada de especial. É só uma sensação difusa de cansaço. E talvez também uma ligeira dor de cabeça. Mas desconfio do meu corpo. Desconfio de mim mesmo. Deve ser só psicológico.
A noite, contudo, faz-se mais densa. O incómodo confirma-se. Vigio toda a noite. Que escura se tornou! O meu próprio corpo o sinto arder. Suo. Suo muito. Estremeço de febre. Afinal, não consigo sossegar. Agora soma-se-lhe a tosse. E uma dor que veio morar no meu peito. Tusso até não poder mais. Inquieto-me. Canso-me. Esgoto-me. A cabeça não para. Não consegue calar a pergunta: Porquê logo agora? Porquê nesta hora? Pode não ser nada. Pode também ser aquele vírus de que oiço falar. Até eu terei sido infetado? Espero o melhor. Mas angustio-me com a possibilidade de tal não vir a acontecer. A minha alma está perturbada. Afaste-se de mim esse vírus!



Segunda estação: Jesus informa os amigos e colegas de trabalho
Penso nos outros. Sobretudo nos que me estão mais próximos. De repente, uma sombra lívida me envolve. Gelo só de imaginar: e se lhes passei o vírus? Falta-me o ar. Não são os pulmões que fraquejam. É o susto que me paralisa o peito. Sufoco só de pensar que lhes possa ter transmitido o vírus. Logo eu. Logo a eles, a quem tudo amo. Que tortura pérfida a desta doença! Corrói-nos os laços, antes mesmo de nos destruir os pulmões. O seu primeiro sintoma é mesmo a solidão. E o medo. Não apenas medo por mim. Medo também pelo próximo. Medo pelo que por minha causa lhe venha a suceder. Que angústia de morte!
É preciso agir. Tenho de lhes dizer. Preciso de os prevenir. Falo-lhes à distância. Encontro-os ainda a dormir. Não vigiaram comigo. Aliás, nestas circunstâncias, não o poderiam fazer. Mostro-me como estou. Falo-lhes abertamente do que sinto. Surpreendidos, não compreendem. Anuncio o meu necessário isolamento. Vou ter me retirar. Vou-lhes ser retirado. Mas eles mo serão também. Antecipo-lhes o seu próprio isolamento. Sou eu agora o leproso e o excluído. Tomem cuidado. Estejam atentos aos sinais. Este vírus também vos há-de perseguir a vós. E remato: levantem-se, vão.



Terceira estação: Jesus liga uma primeira vez para a linha telefónica de apoio
Preciso de ajuda. Recorro ao que insistentemente publicitam estar ali, disponível para me dizer o que é preciso fazer. Pelo telefone é seguro. Garantem que será simples. Há até boas razões cívicas para o fazer. Assim não entupirei ainda mais os já sobrelotados serviços de saúde. Poderei até curar-me aqui, sem sair do meu espaço e fora da cidade. Isto, se é que estou mesmo doente. Do outro lado estará alguém que conhece os mistérios deste vírus. Bastará chamar e essa voz mágica a tudo responderá.
Assim faço. De tão ouvido por estes dias, o número de telefone sei-o de cor. Faço a chamada. É preciso esperar. Di-lo uma voz mecânica, interpolada por música que não é mais que um imenso vazio sonoro. Ao início havia a expectativa de as coisas se poderem compor. E o ânimo correspondente. Mas a prolongada espera tudo muda. Primeiro, transformando-os em irritação. Depois em cansaço. Ao fim, em desnorte. Agora o que é que eu faço?



Quarta estação: Jesus isola-se de sua Mãe
Sinto falta da minha mãe. A doença tem o condão de ressuscitar em nós aquela carência de criança que só uma mãe pode satisfazer. A solidão deste vírus torna a sua ausência ainda mais sentida. Tenho de lhe falar. Não posso deixar de lhe contar. Ela própria, decerto, já intuiu que algo se passa. A uma mãe não se pode mentir e nada se consegue esconder. Mesmo sem saber, ela já o saberá.
Mas, ao mesmo tempo, não o posso fazer. É preciso cabeça fria. Sejamos lógicos. Quererá vir imediatamente. Correrá sobre quaisquer obstáculos. Não se poupará. Esquecer-se-á de si. Relativizará os cuidados e distanciamentos recomendados. Quererá colocar-se entre mim e o vírus. Mas já tem alguma idade. Não pode ser. Pertence ao grupo de risco. Para ela será provavelmente fatal. Temos de estar isolados. Temos de nos isolar um do outro.
Estranha terapêutica nos impõe este vírus: isolar um filho de uma mãe. Nova expulsão, agora imposta pelas leis mais negras da natureza. Como se uma mãe, como se a minha mãe, não experimentasse também em si o vírus que me mora no corpo. Como se nela não morasse tudo de meu, ela que me trouxe todo em si.



Quinta estação: Jesus é ajudado pelo cireneu a fazer compras no supermercado
Acasos da vida ou talvez coisa diferente. Só me resta o vizinho do lado. Aquele que até me parecia simpático, mas com quem nunca troquei uma palavra. Só um esporádico e atrapalhado cruzar de olhares. Aquele com que por vezes nos cumprimentamos em sociedade. Vemos que fomos vistos e isso basta para garantir o ritual. Instrumentaliza-se o olhar. Assim não passamos por antipáticos e, simultaneamente, conservamos os outros à distância. É um olhar sanitário, sem contacto físico ou emocional. Como se prescreve por estes dias.
Mas que fazer? Não me resta mais ninguém. Consta que este vizinho, neste contexto de pandemia, tem ajudado os mais velhos das redondezas. Faz-lhes as compras. Vai ao supermercado, à padaria e à farmácia. Garante-lhes o essencial a quem se encontra nesta reclusão domiciliária. Ele é, paradoxalmente, sinal da vitória e da derrota do vírus. Impede que os mais vulneráveis se exponham ao seu contágio. Mas mostra bem a força do cerco que ele nos montou.
Agora tocou-me a mim. Sou eu quem preciso dele. Sou eu, agora, o vulnerável. Em quarentena, aprendo a custo o que isso significa.



Sexta estação: Jesus liga uma segunda vez para a linha telefónica…
Isto tem de ter uma solução. Pelo menos uma resposta. Insisto uma e outra vez pelo telefone. Não sei se o faço por clarividência ou se por aflição. Faço-o por necessidade. Sobre isso, não há dúvida. Acredito mesmo que quem pede recebe; que a quem é importuno acaba por lhe ser feita justiça. As tentativas de telefonema sucedem-se. Insisto, mas a teimosia não basta. O estado de espírito vai-se alterando. O resultado, contudo, não. Não consigo estabelecer contacto. Fico a falar sozinho. Do outro lado parece não haver ninguém para me escutar. Muito menos para me dirigir uma palavra sequer.
Vou-me abaixo. Caio-o. A cada telefonema frustrado fico prostrado, por dentro e por fora. À fadiga imposta pela doença soma-se-lhe a solidão. Estou só. Estou só, nisto. Desorientado, por não saber o que fazer. Encurralado, por não poder sair. Abandonado, por não ter quem me valha. Não sei como o vírus poderia conseguir algo pior.
Finalmente, alguém atende! Vem aí ajuda.



Sétima estação: Verónica põe a máscara respiratória a Jesus
Não lhe chego a ver a cara. Vem protegida com fatos que nem sei descrever. Mas por detrás daquele equipamento sintético está alguém de verdade. Ela torna-se para mim, de imediato, a imagem da esperança. É um efeito inevitável de quem é visitado por um pouco de branco em circunstâncias tão escuras. Talvez haja uma saída.
Aprecio a delicadeza com que me aborda. Coloca na voz um tom intencionalmente tranquilo. Esforça-se, mas não consegue esconder a sua apreensão. Faz-me o que percebo serem as perguntas de catálogo para esta doença. Como boa profissional da área, cumpre os protocolos médicos. Percorre os vários sintomas. Tenho tudo. A minha desconfiança tornou-se também a dela. Só o teste o poderá confirmar. Mas entre nós não restam muitas dúvidas: é o vírus.
Já me habituara a dizê-lo na minha cabeça. Mas as minhas palavras não são as de um profissional de saúde. Ouvi-lo na boca dela foi outra coisa. Os meus medos e dúvidas, de repente, ganharam substância. Têm agora nome e diagnóstico. Só me resta mesmo colocar a máscara. Passo agora a ter de usar o grande símbolo desta pandemia. Também a mim, o vírus expropria-me do meu próprio o rosto. A minha face torna-se igual à de todos outros que foram também tocados por esta pandemia.



Oitava estação: Jesus espera ser atendido num hospital de campanha
A minha situação degrada-se. Os sintomas avançam galopantes. Quase não consigo falar. Às tantas perguntas que me fazem devolvo apenas silêncio. Sou transportado por astronautas que visitam esta terra.
Estou agora num parque de estacionamento. Deserto de alcatrão, ocupado por um hospital improvisado. Apetece-me o silêncio, mas o amarelo daquelas tendas berra-me aos olhos. A emergência fez nascer um hospital à frente do hospital. É assim porque os desta doença são diferentes. Têm de ficar fora. À porta. Para não contaminar. Há que esperar. Nós somos muitos. Eles são poucos. É fora que é feita a triagem. Esta ditará o que fazer. Melhor: ditará o que me farão.
Entretanto, espero. A angústia está lá. Não sei por que graça, mantenho-me firme. Sinto os calores do corpo. Tremo e tusso sem parar. Padeço a espera. Mas também há dignidade na doença. Disto não vou abrir mão. Essa, repito, não sei por que graça tomou conta de mim. Vou com ela até ao fim.



Nona estação: Jesus desinfeta as suas vestes
O vírus pegou-se a tudo. Por isso nada posso ter comigo. Até o que me reveste o tenho de deixar. Despojado de tudo. Afastado de todos. Despem o nada que sobra de mim. Vejo os restos da minha identidade serem ensacados. Divididos pelo lixo hospitalar. Tudo hermeticamente selado e rotulado: biohazard.
Vestem-me de algo que não sou, mas em que me tornei. Roupa de hospital, assética e industrial. Sinto-me nu, embora vestido. Colocam-me na mão o suporte para o soro. O meu único afago tátil. A minha companhia mais próxima. O frio do metal queima na mão febril.
Eis o doente! Despersonalizado, torno-me apenas mais um naquele corredor sem fim. Irmão de todos os demais. E eles de mim. Familiarizados pelo que do vírus nos corre nas veias. Estamos juntos naquela barca invertida. Somos herdeiros nas sortes que a pandemia lançou.



Décima estação: Jesus faz (finalmente) o teste
A dimensão do caos só é suplantada pela grandeza da generosidade. O esgotamento é geral. A dedicação também. Mas a escassez é evidente. Não chega para todos. Não chega para tudo. O desalento também se contagia, circulando entre doentes e cuidadores.
Desde que aqui cheguei aguardo o teste que tudo esclarecerá. Entre nós, os doentes, ele parece uma miragem. Um Godot para nós. É ele o assunto. Mas de que serve falar? Não o vejo chegar. Não basta chamar. A voz emudeceu. Os ouvidos, pelos vistos, também. O tempo é nosso inimigo.
Finalmente acontece. Fui testado. Sou até um privilegiado. A simplicidade do gesto acirra a irracionalidade da espera. Porquê? Agora é mais do mesmo. Agora é esperar a sentença. Calado e parado. Afinal é um juízo. De um juiz sem rosto nem nome. E eu réu de culpa nenhuma. Só falei na rua. Só toquei o impuro.
O veredicto chegou. O teste fala verdade enquanto mente. O negativo diz-se positivo. Estou condenado.



Décima primeira estação: Jesus é internado num pavilhão polidesportiuvo
Lavrada a sentença, uno-me aos amaldiçoados. Um armazém de doentes. Depósito de vírus. Num comboio de gente. Cada cama um vagão. Lado a lado dispostas. Olho à minha esquerda. Olho à minha direita. Condenados como eu. Uns resmungam a sua revolta. Gemem o seu desconforto. Outros mansamente quietos. Suportam tudo isto calados. Sou também uns e outros. Calo-me. Mas grito também.
Tubos e fios amarram-me à vida. Amarram-me também esta cama. O mesmo que me sustém, é isso que me prende. As artes da medicina fazem tudo por mim. O meu corpo já não responde. Eu já não respondo. Isto não tem cura.
Faltam-me os meus. Onde estão? Não me podem visitar. Não os posso ver nem tocar. Imagino a sua angústia lá fora. Percebo. E não percebo. Também esta cura me falta. Um cuidado. Uma companhia. Uma palavra. Uma oração. Uma mão na minha mão. Um abraço. Um beijo. Porque me abandonaram?



Décima segunda estação: Jesus não foi contado nas estatísticas oficiais
Não sou já ninguém. Não tenho já nome. Esse está posto aos meus pés, como se para ser por mim próprio pisado. Sou um número entre números. Foi isso que escreveram sobre este leito.
Sou apenas mais uma cifra nalguma contagem. Talvez nem isso. Até pelas contabilidades da doença serei ignorado? Sou apenas um ínfimo pontinho na linha de algum gráfico. Importo porque lhe acentuo o ângulo. Porque engrosso o volume de infetados graves. Porque não achato a curva. Sou já somente material para os modelos matemáticos. Variável a interferir com as projeções da pandemia.
Como vim acabar assim? Nunca fui bom com números. E em número acabei transformado. Sou bom com nomes. Mas esses, aqui não os encontro. O dos profissionais de saúde, não há forma de perguntar. O dos que estão a meu lado, desconheço. O meu, ninguém aqui conhece.



Décima terceira estação: Jesus, por fim, “expirou”
O fim aproxima-se. Pressinto-o. Já o vi acontecer por aqui. Já sei como é. A respiração arrasta-se. Tudo isto me sufoca. Trago o peso do universo inteiro sobre o meu peito. A cada golfada de ar preciso de o vencer. Os pulmões fraquejam. Tudo o resto também. O alento vai-me deixando, um pouco de cada vez. À minha volta reúnem-se mais batas brancas e máscaras que não escondem a apreensão. Tudo está preparado.
O contraste é grande. Por fora, o corpo luta. Tantos lutam por mim. Por dentro, simplesmente me entrego. É preciso saber partir. No derradeiro momento, boicoto o vírus. Não, não és tu que me roubas a vida. Sou que a entrego. Se é pela respiração que me destróis. Então é pela respiração que te derroto. Morres comigo.
E expirou.



Décima quarta estação: Jesus é sepultado
De novo à porta. Agora do cemitério. Jardim de pedras. É ali, só ali, que se podem fazer umas preces. Encomendá-lo a quem sempre esteve com ele. Assim lhe dizia a fé. Entre muitos, convalesceu só. Embora ladeado, morreu só. Agora, é coerentemente sepultado só. Ou quase. Apenas alguma família mais íntima. A mãe de que se isolara. Mais um ou outro amigo discreto. Estes, porventura, a mais. A pandemia não o autoriza.
A ele já ninguém o vê. A urna vem selada. Ele não importa. Os que o choram também não. Ainda agora, só uma coisa importa: que o vírus não se propague. Nem na morte tem rosto. Ou toque. Ou beijo. Não há última vontade, nem mesmo depois da hora. Falta o perfume das flores. A oração é acelerada. O rito abreviado. Não se diz adeus assim! Não há vela. Nem nesta hora se-lhe faz companhia. Só há luto. E a pergunta calada que rasga por dentro:
Quando terá isto fim?


P. Alexandre Palma
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia
In Expresso (texto)
Imagem: "Via Crucis" | Adrian Paci | 2011 | Instalação permanente na igreja de S. Bartolomeu, Itália | © artache; © Adrian Paci | Fotografia: Andrea Rossett
Publicado em 06.04.2020


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