No dia de amanhã, não estaremos todos melhores, nem bem, nem totalmente transformados. No entanto, todos sujeitos a saber dar e a saber receber. Repartir o material. Respeitar o emocional. Acolher o espiritual.
EntardecerRegresso muitas vezes ao mito da criação, em particular do ser humano, como forma de me situar no presente. A humanidade, neste tempo novo, continua atravessada do mesmo pó da terra modelado e do mesmo alento. A respiração tantas vezes remetida para o básico, sem necessidade de grandes reflexões, tornou-se nestes tempos consciência de morte e de vida.
O alento, o sopro, o suspiro no tempo total com a presença dos mais próximos em casa, no tempo triste com a saudade dos que partiram sem abraço, no tempo de cansaço pelos corredores dos hospitais, no tempo da existência na pergunta sobre o amanhã lançada pelas ruas e praças vazias.
É o alento a acontecer na obrigação de se viver o presente inesperado. Tantas planificações, tantos programas, tantas relações, tantos projetos transformados de um dia para o outro, salvaguardando as pessoas como o mais importante.
A casa tornou-se lugar de espera, também a transformar-se em esperança. Encarnada, é certo. Sem romantismo ou embelezamento, mas tremendamente real. A casa da relação, do lar, converte-se em sala de aula, em escritório, em empresa, em gabinete, em ginásio, em capela, em lugar de distância onde não se pode entrar por medo de contágio. Como o coração. Despertam os muitos sentimentos e emoções ante as vinte e quatro sobre vinte e quatro horas de estar em tempo novo. Quantos suspiros dados? Quantos gritos abafados? Quantos desejos formulados? Quantas lágrimas derramadas? Quem disse que a conversão era simples? Põe-se o sol.
Noite
O tempo do conforto e dos medos. São mais de 40 dias totalmente novos na vida de pequenos e graúdos. O simbólico do número torna-se concreto. Quarenta e tal dias de cansaço anímico e físico, aliviado em mensagens e piadas, telefonemas e horas sem fim de séries, alguma leitura e muita cozinha, meditação e oração.
É tempo de dar espaço ao medo, à tristeza, em etapas de luto real ou da existência. Sim, permitir-se a fraqueza. Todos somos feitos desse pó que se eleva no vento forte. Todos estamos no mesmo mar da finitude, do limite, deixando cair a imposição do heroísmo para agradar na selva urbana onde há que brilhar a todo o custo para se ser aceite.
O silêncio da longa noite de 40 dias obriga à consciência de que, sim, existo como sou, levando à percepção da nudez da vulnerabilidade e da simplicidade. Aquela pequena partícula que parou o mundo não vê dinheiro, fama, ideologias, géneros, sexualidades, fés. Ela não vê o que insistimos em viver como modos de separação, segregação, divisão. Seremos capazes de um novo olhar para o pó da terra modelado em alento divino? Desponta o sol.
Amanhecer
Somos cerca de sete mil milhões de pessoas no mundo. Aproximadamente dez milhões e algo em Portugal. Números, muitos números com nomes e rostos em tempo novo. Muitos foram os pés lavados na frescura de liturgia renovada.
As portas de casa abrem-se e dão-se suaves passos. Os olhares na rua cruzam-se com nova intensidade.
A voz ainda é abafada pela máscara, sinal de cuidado e respeito. Aqui e ali colocam-se caixas solidárias a ajudar quem mais precisa no comer, no lavar, no amar. Contas bancárias enchem-se com o muito ou pouco na partilha de pagamentos de ordenados. Fábricas mudam a linha para produzir viseiras ou ventiladores. Os altares são revestidos de orações de petição e de acção de graças por tanto bem feito. Pede-se ainda calma e contenção. Sem auto-enganos, nem todos os corações estão despertos. Nasce o sol.
Dia
A luz revela todas as cores. O espectro da diversidade mostra a riqueza humana na existência.
Cada pessoa tem a sua peregrinação de vida a fazer. Nem todos chegam à mesma hora. A viagem interior tem muitas variações.
No dia de amanhã, não estaremos todos melhores, nem bem, nem totalmente transformados. No entanto, todos sujeitos a saber dar e a saber receber. Repartir o material. Respeitar o emocional. Acolher o espiritual.
O novo dia pedirá muita compreensão. Pedirá que o amor deixe de ser algo bonito, para passar ao gesto real. E tanto ama o que dá, como o que justamente recebe. Se assim for, conheceremos de coração um pouco mais do amor de Deus, recordando que é para todos a luz do sol.
* Paulo Duarte,sj. (1979, Portimão) é jesuíta, padre, colaborador na Casa da Torre - Centro de Espiritualidade e Cultura (Soutelo - Vila Verde) e Centro Académico de Braga. Tem como interesse de investigação a relação da arte com a espiritualidade no acompanhamento, nomeadamente através do corpo e da dança. A presença nas redes sociais e ocasionalmente em programas televisivos permite-lhe viver uma comunicação ampla com a sociedade atual. Tem dois livros publicados: Deus como Tu (2018) e Rezar a Vida - A experiência da fé no quotidiano (2019).
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