De Quinta-feira Santa a Domingo de Páscoa: Gestos para uma liturgia em família

Para que Páscoa nos estamos a preparar? A pergunta tornou-se comum, pública, sofrida.
Deveria ser a de cada ano, porque a repetição da festa nunca pode ser sinónimo de estagnação e dado adquirido. As dramáticas circunstâncias que rapidamente envolveram larga parte da humanidade arrancam-nos, todavia, das zonas de conforto, e impõem interrogações radicais, mas talvez saudáveis.
O cristianismo – muitos o têm observado nos últimos dias – está diante de um desafio doméstico. Às Igrejas perspetivam-se múltiplas possibilidades. Imaginar uma Semana Santa em que cada um, de casa, facilmente se ligue à sua paróquia, ou ao bispo, e veja assim parcialmente reconstituir-se a unidade com os irmãos é uma boa possibilidade, impensável noutros tempos. É o que acontecerá em muitos casos, e isto – não temos dúvidas – ajudará, consolará: será experiência real, e não virtual, dará outra amplitude ao que, de portas fechadas, acontecerá onde os pastores vão celebrar os mistérios. Todavia, é legítimo o pressentimento que pode não bastar. Ou, pelo menos, não esgota a potencialidade do momento.
Por outro lado, não se pode esconder que as celebrações do Tríduo Pascal, coração do ano litúrgico, não são consideradas como determinantes por grande parte dos fiéis. E se, agora, algo começasse a emergir do interior de algumas ou de muitas casas? É uma possibilidade que deixam pelo menos entrever os elementos-chave da liturgia, que as circunstâncias atuais nos induzem a redescobrir.


Após a bênção, um membro da família poderia partir o pão e distribuir um pedaço a todos, sem dizer nada, mas dando espessura simbólica ao gesto



Na Quinta-feira Santa, por exemplo, os sinais fortes da vida de Cristo poderiam desenrolar-se à volta da mesa, à hora do jantar. Imaginemos que a família se reúne, mas que também quem vive só prepare a mesa com especial importância. Depois de uma breve introdução, que inclua uma espécie de saudação, ou de abraço da paz entre os presentes, a oração poderia começar com a leitura dos primeiros versículos de João 13, seguida, se as circunstâncias da casa o permitirem, do lava-pés recíproco entre os esposos, e depois dos filhos, mais do que cada um o fazer a quem está ao seu lado. Seria um gesto extremo, certamente a não impor, mas que pode encontrar algumas famílias a ele predispostas.
O jantar-ceia propriamente dito poderia iniciar-se, inclusive para as pessoa sós, com uma oração de bênção da mesa - «Bendito sejas, Senhor…» - que tenha dentro de si algumas palavras de memória da última ceia - «Nesta noite em que Jesus e os discípulos…». No centro da mesa mereceria estar um único grande pão, em vez de muitos pães pequenos, comprado ou preparado em casa durante o dia. Após a bênção, um membro da família poderia partir o pão e distribuir um pedaço a todos, sem dizer nada, mas dando espessura simbólica ao gesto. A partir daqui a ceia prosseguiria na habitual, e se possível mais intensa, convivialidade.
Nesta Sexta-feira Santa, além da evocação da morte de Jesus, muitos são os motivos de dor a interiorizar. Valeria a pena criar um momento de particular recolhimento, talvez na hora em que «se fez escuro em toda a Terra». Poder-se-ia prever que ao início da tarde as persianas fossem fechadas, as luzes apagadas, e desligados todos os equipamentos tecnológicos, de maneira que durante cerca de meia hora tudo estivesse envolvido por um grande silêncio.


E se à mesa voltassem o leite e o mel que, segundo a Tradição apostólica, eram oferecidos na noite de páscoa aos recém-batizados, para que saboreassem a doçura da vida nova?



Às três horas inicia-se a celebração litúrgica que pode ser seguida pelos meios de comunicação, mas antes poder-se-ia fazer convergir a família para um crucifixo. Ler-se-ia a 12.ª estação da via-sacra, ou um salmo - «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?», ou o excerto do Evangelho onde a expressão está inserida. Poder-se-ia, depois, pedir a cada membro da família para beijar com delicadeza e intensidade o crucifixo, lendo-se, depois, a grande oração universal prevista na liturgia da paixão, ou uma adaptação, que permita sentir o mundo presente, os sofrimentos, os defuntos.
A noite de Sábado Santo marca o fim de todas as noites. Ainda que a vigília pascal seja irreproduzível na sua força, é muito importante que a treva profunda que envolveu a vida coletiva seja atravessada por sinais que interrompam a escuridão. Muito simplesmente, seria belo na obscuridade e no silêncio mais profundo, que todos os sinos da diocese festejassem à mesma hora, repicando durante vários minutos, anunciando a ressurreição. Nesse momento, todos poderiam acender uma lâmpada, a colocar no peitoril das janelas. O papa Francisco recordava um gesto popular significativo que ocorre em vários países, muito adaptado a uma oração doméstica: ao som dos sinos do anúncio da ressurreição, as mães e avós levam as crianças a lavar os olhos com água, como sinal para poder ver as coisas de Jesus, as coisas novas.
Na manhã de Páscoa, a casa pode ficar mais bela com flores, nos locais onde possam ser recolhidas. A força de vida que fluía entre o mestre de Nazaré e as suas discípulas, a relação privilegiada entre Evangelho e feminilidade, o cuidado da Igreja-mãe podem tornar-se mais percetíveis nos sinais domésticos do que nas liturgias codificada. E se à mesa voltassem o leite e o mel que, segundo a Tradição apostólica, eram oferecidos na noite de páscoa aos recém-batizados, para que saboreassem a doçura da vida nova?
Poderíamos também imaginar gestos audazes, que ligassem, simbolicamente, uma casa às outras, e todas à única Igreja: por exemplo, onde é possível, que os padres e diáconos, revestidos com os paramentos brancos da festa, saiam das igrejas e caminhem, no dia de Páscoa ou nos sete dias seguintes (oitava) ao menos pelas artérias mais habitadas da sua paróquia, abençoando, da rua, as casas com a água da vigília. O ponto – é evidente – não estaria tanto no gesto, mas naquilo que por seu intermédio Deus vai abençoando: a vida nova reposta entre os muitos «dois ou três» reunidos em nome de Jesus. Uma subversão dos hábitos, que torne não menos eficaz, e talvez mais credível, a nossa “ressurreição com Ele”. Um dia, como ainda não embaraça no Oriente, quem sabe se poderemos chegar a saudar-nos também no Ocidente com o anúncio: «Cristo ressuscitou!».


Sergio Massironi (adapt.)
In L'Osservatore Romano
Trad./adapt.: Rui Jorge Martins
Imagem: alkiona25/Bigstock.com
Publicado em 30.03.2020


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