Nestes dias negros, onde a primavera antecipada parece uma
partida da natureza, vêm-me muitas vezes à ideia duas obras-primas: “Os
noivos”, de Alessandro Manzoni, e “A peste”, de Albert Camus.
Em ambas há quem viva a tragédia na fé cristã e quem a perca. Pergunto-me como estamos hoje a viver nós, cristãos, a tragédia, todos de alguma forma ameaçados pelo inimigo visível. Como viver, na fé em Cristo, estes dias?
Escreve-me um jovem padre amigo: «Também estou em isolamento, mas está tudo bem, graças a Deus. As minhas “ovelhinhas” estão bem, algo desencorajadas por estar distantes da paróquia… mas eu procuro estar próximo delas com alguns telefonemas e alguma “cavaqueira”, à distância, com os meus vizinhos de casa. Enquanto isso, aproveito para também eu recuperar um pouco de força e coragem. Rezo e leio… Pergunto-me quanto esforço temos de fazer para conseguir ultrapassar um certo planeamento e um modo de conhecer Deus mais ligado aos nossos esquemas (aqueles nos quais crescemos, também nós, jovens) do que à frescura do Evangelho … Com toda a boa vontade, tenho a impressão de que, ainda que involuntariamente, por vezes ficamos enredados. Haveremos de falar disso de viva voz.
Mas o meu pensamento é sempre para a paróquia. Talvez este “jejum” eucarístico possa contribuir para fazer crescer o desejo de Deus nas pessoas… é o que desejo, e procuro acompanhá-lo. Creio que a nossa principal missão, neste momento, é precisamente esta, mais do que fazer mensagens em vídeo e catequeses pela internet. Posso estar errado, mas aponto a estimular uma fé mais genuína e menos supersticiosa. Não ligada ao monte e ao templo, para o dizer com a samaritana, mas ao espírito e à verdade. Por vezes, o silêncio à minha volta, o olhar que não consegue cruzar outros olhos, a incerteza do amanhã… abrem caminhos ao medo. Que procuro confiar sempre ao Senhor».
Confio-me a estas palavras para responder às minhas perguntas sobre como viver diante do Senhor estes difíceis dias, e como caminhar com as pessoas amanhã. Tanto sofrimento e tanto horror não podem passar em vão. Centro-me em três pontos.
«O meu pensamento é sempre para a paróquia»
Se acredito verdadeiramente no Ressuscitado e sei que a última palavra é a vida, hoje estou junto da minha gente, e não só localmente. Não me torno inalcançável, não sou o primeiro a abandonar a barca. Se todos têm medo, também eu tenho o direito de o ter; se todos têm incertezas, também eu as tenho; se ninguém tem respostas certas sobre o amanhã, também eu, padre, não as tenho. Mas tenho algo de particular, e posso dizê-lo: não se pode afundar uma barca na qual embarcou o próprio Filho de Deus.
«Contribuir para fazer crescer o desejo de Deus nas pessoas»
Não creio que se trate de acrescer aquele desejo de Deus que amanhã fará ir as pessoas à igreja e multiplicará os nossos “clientes”. Desejo de Deus é o desejo de viver segundo a Verdade. Com efeito, é mentira pensarmo-nos autores da vida, árbitros do bem e do mal (as duas árvores violadas em Génesis 3), e portanto possíveis donos da Terra e dos homens, segundo a lei bestial da selva «a força é fundamento do direito» - como afirmam os «ímpios» em Sabedoria 2,11.
Nós, padres, nem sempre dissemos isto. Por vezes, apresentámos Deus não como aquele que nos dava as leis da vida, as leis que nos estruturam a partir do íntimo e nos permitem viver, mas como uma espécie de monarca que impõe leis e tributos, para ver se os súbditos são respeitadores ou não, porque nos tem no seu poder e quer assegurá-lo com o medo.
O desejo de Deus não tem, portanto, nada a partilhar com a possível influência ideológica que se pode deduzir de muitas orações dirigidas a Ele. Tenho de estar atento, digo a mim próprio. Pedir-lhe o fim da provação não poderá engendrar a ideia de que foi Deus a enviar-nos o flagelo? Pedir para ter piedade de nós não poderá fazer pensar que Deus nos está a castigar? Não é assim. E sabemo-lo mal abrimos o Evangelho, como devem abri-lo certos transmissores muito devotos, mas talvez de muito pouca fé cristã. Amanhã, em dias mais graciosos e menos ferozes, deveremos reaprender e voltar a ensinar o sentido da oração como Jesus a ordena.
«Estimular uma fé mais genuína e menos supersticiosa»
Há muitas formas de superstição de que a religiosidade popular, e não só, está impregnada. Todos os padres sabem bem estas coisas. Encontra-se em cada festa do padroeiro, onde não se compreende o que estão a fazer as pessoas com as suas aclamações e os seus rituais centenários. Todavia, a melhor maneira de combater este perigo é «estimular uma fé mais genuína».
E o que é isso? Uma fé mais centrada no Jesus do Evangelho, e muito menos em especulações de uma teologia abstrata. Mais no viver como Jesus viveu do que em saber tudo dele, como se pudéssemos conhecer de Deus e de Jesus alguma coisa para além daquilo que a vida e os gestos de Jesus nos revelam. Uma fé que impele não só para a “fé em Jesus”, mas também a assumir como própria, no quotidiano, a “fé de Jesus”: a sua maneira de ver o mundo, o destino humano, o mistério santo das origens, o propósito da vida. Ele “salvou-nos” tirando-nos do desespero de nos sentirmos abandonados por um estranho Criador nas mãos de poderosos. E disse-nos que Deus é “Pai” amoroso e misericordioso. “Salvou-nos” dizendo-nos qual é a nossa verdade de humanos: somos filhos amados pelo Pai e irmãos bondosos entre nós. Disse-nos que a nossa dignidade de humanos não está ligada àquilo que acumulámos, ao poder que temos, ao sucesso, mas só e exclusivamente ao facto de sermos criaturas com o “selo” do Pai, sequiosos de infinita beleza, de êxtase da vida, intrinsecamente empastados de amor, até ao ponto de não termos descanso se não amarmos como o Pai ama.
Para nos fazer compreender isto, Jesus não pretendeu divinizar o ser humano, elevá-lo àquilo que não é (teria sacralizado a prepotência dos prepotentes que se autoproclamavam “divinos” e “sagrada majestade”, teria justificado os super-homens), mas humanizou Deus, disse-nos que podemos viver de Deus e com Deus nos gestos da nossa humanidade. Todos podemos exprimir o Infinito nos pequenos gestos do finito, podemos cheirar a Eterno nas atitudes que realizamos no tempo. E para que não restassem dúvidas, Jesus nasce de um povo desprezado, numa família pobre, gosta de estar com gente de má reputação, com pecadores e publicanos, com aqueles que não têm nenhum título para além da sua nua (e por vezes ambígua) humanidade. Em todos eles vê um traço indelével e inegociável da sua semelhança com o Pai. Jesus disse-nos que a pessoa é “divina” se vive plenamente a sua humanidade quotidiana de criatura humana. Se vive para aquilo que intrinsecamente é, se tende para alcançar o propósito para o qual foi criado: tão humano que faz transparecer a sua origem divina.
Não gostaria de cair na mesma armadilha de quantos instrumentalizam o sofrimento e o medo para se assegurar que amanhã, quando Deus quiser, as igrejas fiquem finalmente cheias. Hoje, nós, padres, somos chamados a estar com as pessoas. Este nosso estar-com é já um sinal de que Deus não abandonou o seu povo. Mas temos também a obrigação de orar meditando sobre o que está a acontecer. Na quietude dos dias demasiado longos, será que não podemos, não devemos, preocupar-nos em rever a nossa história e perguntarmo-nos se, precisamente nós, peritos da “salvação”, não negligenciámos dizer com clareza que a fé não é tanto noção aprendida que faz conhecer a definição exata de Deus, mas antes luz para dar sentido à vida? Ou que ela é o significado último dos nossos dias e do nosso “fazer”? E considero urgente perguntarmo-nos se não acabámos por apoiar quem é responsável pelo desastre atual meticulosamente anunciado pelos desastres precedentes. Fomos sentinelas da Vida, ou acabámos por estar – sem nos apercebermos – do lado de quem ofendia esta vida, oferecendo benefícios a uma parte da população mundial e desprezando quem estava do lado de fora dos beneficiados?
Não se trata aqui de opções políticas feitas ou não feitas pela Igreja. Pergunto-me se a nossa teologia e a nossa pastoral terão querido permanecer cristãs, isto é, dignas do único Jesus da história que transparece do Evangelho. Do Jesus que ousou definir-se como Vida e portador de Vida.
Enquanto ridículos poderosos se perguntam se o coronavírus é chinês ou americano, enquanto estes poderosos evitam enfrentar o problema de o sistema por eles imposto com inaudita violência é compatível com a vida no planeta, a nós, padres, cabe a obrigação de nos perguntarmos se não descuidámos alguma coisa de importante na transmissão do Evangelho. Qualquer coisa como a Bela Notícia tal como a deixou Jesus de Nazaré, e como hoje, desesperadamente, procura evidenciá-la o papa Francisco.
Temos de o fazer, enquanto há… tão pouco para fazer nas igrejas fechadas.
Em ambas há quem viva a tragédia na fé cristã e quem a perca. Pergunto-me como estamos hoje a viver nós, cristãos, a tragédia, todos de alguma forma ameaçados pelo inimigo visível. Como viver, na fé em Cristo, estes dias?
Escreve-me um jovem padre amigo: «Também estou em isolamento, mas está tudo bem, graças a Deus. As minhas “ovelhinhas” estão bem, algo desencorajadas por estar distantes da paróquia… mas eu procuro estar próximo delas com alguns telefonemas e alguma “cavaqueira”, à distância, com os meus vizinhos de casa. Enquanto isso, aproveito para também eu recuperar um pouco de força e coragem. Rezo e leio… Pergunto-me quanto esforço temos de fazer para conseguir ultrapassar um certo planeamento e um modo de conhecer Deus mais ligado aos nossos esquemas (aqueles nos quais crescemos, também nós, jovens) do que à frescura do Evangelho … Com toda a boa vontade, tenho a impressão de que, ainda que involuntariamente, por vezes ficamos enredados. Haveremos de falar disso de viva voz.
Mas o meu pensamento é sempre para a paróquia. Talvez este “jejum” eucarístico possa contribuir para fazer crescer o desejo de Deus nas pessoas… é o que desejo, e procuro acompanhá-lo. Creio que a nossa principal missão, neste momento, é precisamente esta, mais do que fazer mensagens em vídeo e catequeses pela internet. Posso estar errado, mas aponto a estimular uma fé mais genuína e menos supersticiosa. Não ligada ao monte e ao templo, para o dizer com a samaritana, mas ao espírito e à verdade. Por vezes, o silêncio à minha volta, o olhar que não consegue cruzar outros olhos, a incerteza do amanhã… abrem caminhos ao medo. Que procuro confiar sempre ao Senhor».
Confio-me a estas palavras para responder às minhas perguntas sobre como viver diante do Senhor estes difíceis dias, e como caminhar com as pessoas amanhã. Tanto sofrimento e tanto horror não podem passar em vão. Centro-me em três pontos.
«O meu pensamento é sempre para a paróquia»
Se acredito verdadeiramente no Ressuscitado e sei que a última palavra é a vida, hoje estou junto da minha gente, e não só localmente. Não me torno inalcançável, não sou o primeiro a abandonar a barca. Se todos têm medo, também eu tenho o direito de o ter; se todos têm incertezas, também eu as tenho; se ninguém tem respostas certas sobre o amanhã, também eu, padre, não as tenho. Mas tenho algo de particular, e posso dizê-lo: não se pode afundar uma barca na qual embarcou o próprio Filho de Deus.
«Contribuir para fazer crescer o desejo de Deus nas pessoas»
Não creio que se trate de acrescer aquele desejo de Deus que amanhã fará ir as pessoas à igreja e multiplicará os nossos “clientes”. Desejo de Deus é o desejo de viver segundo a Verdade. Com efeito, é mentira pensarmo-nos autores da vida, árbitros do bem e do mal (as duas árvores violadas em Génesis 3), e portanto possíveis donos da Terra e dos homens, segundo a lei bestial da selva «a força é fundamento do direito» - como afirmam os «ímpios» em Sabedoria 2,11.
Nós, padres, nem sempre dissemos isto. Por vezes, apresentámos Deus não como aquele que nos dava as leis da vida, as leis que nos estruturam a partir do íntimo e nos permitem viver, mas como uma espécie de monarca que impõe leis e tributos, para ver se os súbditos são respeitadores ou não, porque nos tem no seu poder e quer assegurá-lo com o medo.
O desejo de Deus não tem, portanto, nada a partilhar com a possível influência ideológica que se pode deduzir de muitas orações dirigidas a Ele. Tenho de estar atento, digo a mim próprio. Pedir-lhe o fim da provação não poderá engendrar a ideia de que foi Deus a enviar-nos o flagelo? Pedir para ter piedade de nós não poderá fazer pensar que Deus nos está a castigar? Não é assim. E sabemo-lo mal abrimos o Evangelho, como devem abri-lo certos transmissores muito devotos, mas talvez de muito pouca fé cristã. Amanhã, em dias mais graciosos e menos ferozes, deveremos reaprender e voltar a ensinar o sentido da oração como Jesus a ordena.
«Estimular uma fé mais genuína e menos supersticiosa»
Há muitas formas de superstição de que a religiosidade popular, e não só, está impregnada. Todos os padres sabem bem estas coisas. Encontra-se em cada festa do padroeiro, onde não se compreende o que estão a fazer as pessoas com as suas aclamações e os seus rituais centenários. Todavia, a melhor maneira de combater este perigo é «estimular uma fé mais genuína».
E o que é isso? Uma fé mais centrada no Jesus do Evangelho, e muito menos em especulações de uma teologia abstrata. Mais no viver como Jesus viveu do que em saber tudo dele, como se pudéssemos conhecer de Deus e de Jesus alguma coisa para além daquilo que a vida e os gestos de Jesus nos revelam. Uma fé que impele não só para a “fé em Jesus”, mas também a assumir como própria, no quotidiano, a “fé de Jesus”: a sua maneira de ver o mundo, o destino humano, o mistério santo das origens, o propósito da vida. Ele “salvou-nos” tirando-nos do desespero de nos sentirmos abandonados por um estranho Criador nas mãos de poderosos. E disse-nos que Deus é “Pai” amoroso e misericordioso. “Salvou-nos” dizendo-nos qual é a nossa verdade de humanos: somos filhos amados pelo Pai e irmãos bondosos entre nós. Disse-nos que a nossa dignidade de humanos não está ligada àquilo que acumulámos, ao poder que temos, ao sucesso, mas só e exclusivamente ao facto de sermos criaturas com o “selo” do Pai, sequiosos de infinita beleza, de êxtase da vida, intrinsecamente empastados de amor, até ao ponto de não termos descanso se não amarmos como o Pai ama.
Para nos fazer compreender isto, Jesus não pretendeu divinizar o ser humano, elevá-lo àquilo que não é (teria sacralizado a prepotência dos prepotentes que se autoproclamavam “divinos” e “sagrada majestade”, teria justificado os super-homens), mas humanizou Deus, disse-nos que podemos viver de Deus e com Deus nos gestos da nossa humanidade. Todos podemos exprimir o Infinito nos pequenos gestos do finito, podemos cheirar a Eterno nas atitudes que realizamos no tempo. E para que não restassem dúvidas, Jesus nasce de um povo desprezado, numa família pobre, gosta de estar com gente de má reputação, com pecadores e publicanos, com aqueles que não têm nenhum título para além da sua nua (e por vezes ambígua) humanidade. Em todos eles vê um traço indelével e inegociável da sua semelhança com o Pai. Jesus disse-nos que a pessoa é “divina” se vive plenamente a sua humanidade quotidiana de criatura humana. Se vive para aquilo que intrinsecamente é, se tende para alcançar o propósito para o qual foi criado: tão humano que faz transparecer a sua origem divina.
Não gostaria de cair na mesma armadilha de quantos instrumentalizam o sofrimento e o medo para se assegurar que amanhã, quando Deus quiser, as igrejas fiquem finalmente cheias. Hoje, nós, padres, somos chamados a estar com as pessoas. Este nosso estar-com é já um sinal de que Deus não abandonou o seu povo. Mas temos também a obrigação de orar meditando sobre o que está a acontecer. Na quietude dos dias demasiado longos, será que não podemos, não devemos, preocupar-nos em rever a nossa história e perguntarmo-nos se, precisamente nós, peritos da “salvação”, não negligenciámos dizer com clareza que a fé não é tanto noção aprendida que faz conhecer a definição exata de Deus, mas antes luz para dar sentido à vida? Ou que ela é o significado último dos nossos dias e do nosso “fazer”? E considero urgente perguntarmo-nos se não acabámos por apoiar quem é responsável pelo desastre atual meticulosamente anunciado pelos desastres precedentes. Fomos sentinelas da Vida, ou acabámos por estar – sem nos apercebermos – do lado de quem ofendia esta vida, oferecendo benefícios a uma parte da população mundial e desprezando quem estava do lado de fora dos beneficiados?
Não se trata aqui de opções políticas feitas ou não feitas pela Igreja. Pergunto-me se a nossa teologia e a nossa pastoral terão querido permanecer cristãs, isto é, dignas do único Jesus da história que transparece do Evangelho. Do Jesus que ousou definir-se como Vida e portador de Vida.
Enquanto ridículos poderosos se perguntam se o coronavírus é chinês ou americano, enquanto estes poderosos evitam enfrentar o problema de o sistema por eles imposto com inaudita violência é compatível com a vida no planeta, a nós, padres, cabe a obrigação de nos perguntarmos se não descuidámos alguma coisa de importante na transmissão do Evangelho. Qualquer coisa como a Bela Notícia tal como a deixou Jesus de Nazaré, e como hoje, desesperadamente, procura evidenciá-la o papa Francisco.
Temos de o fazer, enquanto há… tão pouco para fazer nas igrejas fechadas.
P. Felice Scalia, SJ
In Stampa Libera
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: fizkes/Bigstock.com
Publicado em 26.03.2020
SNPC
Comentários
Enviar um comentário