Fé doméstica: A tradição judaica como modelo para as famílias cristãs de hoje

No Novo Testamento, a segunda carta a Timóteo – a par da primeira, como também as enviadas a Tito e Filémon – é uma das poucas escritas a destinatários individuais e “privados”, dado que a maior parte das missivas paulinas e das restantes apostólicas são, maioritariamente, endereçadas a comunidades.

Neste pacote de cartas remetidas a destinatários singulares, a segunda a Timóteo detém a originalidade de ser a mais afetuosa e rica de emoções, a mais íntima e familiar. Transbordante de afetos profundos, merece ser lida com toda a profundidade do nosso coração.
Paulo considera a sua fé, o seu serviço apostólico, colocando-o na linha de continuidade dos seus antepassados, decorrente da fé hebraica. O apóstolo dos gentios tem, depois, bem presente a fé «sem fingimento» de Timóteo, «que se encontrava já na tua avó Loide e na tua mãe Eunice e que, estou seguro, se encontra também em ti» (1,5).
Entre a mãe e a avó de Timóteo de um lado e o próprio Timóteo de outro intervém nada mais nada menos que Jesus, morto e ressuscitado. É esta sólida fé judaica que gostaria de aprofundar, interpelando diretamente Timóteo, perguntando-lhe: «Qual era esta tua fé, qual era a fé da tua avó, a fé da tua mãe?».


As crianças aprendem, celebrando na vida, ouvindo contar a história do povo e deste Deus misericordiosos, próximo, fiel, presente, através da experiência quotidiana



Tenho motivos para acreditar que ele poderia responder-nos mais ou menos assim: «É como a vossa, certamente. Talvez com algumas tonalidades diferentes, porque vós – diria Timóteo –, ocidentais, partis sempre do alto das definições concetuais». Eis a fé judaica como Timóteo a recebeu antes do batismo: concebida não abstratamente, mas a partir de experiências concretas, de ações realizadas por Deus.
Gostaria agora de reportar-me à experiência do povo judeu, que quotidianamente vou fazendo em Israel, onde, para transmitir a fé, não há catecismo, catequistas, nem sequer horário para aulas de religião. Como é então transmitida a fé? Em família, não através de definições abstratas, que se têm de aprender de memória, mas através da celebração das festas.
As festas são o grande lugar de ensinamento da fé para a criança judaica. Por exemplo, a belíssima festa do início de ano judeu, Rosh-haschanat, que ocorre em setembro. Depois, a festa outonal do Sukkot, isto é, dos Tabernáculos ou das Tendas, ligada à colheita dos frutos da terra, quando, no jardim de casa ou no pequeno terraço, ou na varanda, cada família constrói uma tenda para a qual, durante uma semana, se dirige para rezar e comer certos alimentos, para não se esquecer dos quarenta anos de caminho no deserto, quando Israel, antes de viver dos frutos da Terra Prometida, era sustentado gratuitamente todos os dias pela mão providencial de Deus.
Segue-se o Yom-Kippur, o soleníssimo dia da expiação, liturgicamente falando o mais importante, de jejum total. Depois há a festa do Hannukah, que celebra a renovação do templo. Há ainda o Purim, palavra que quer dizer “destino”, o carnaval hebraico, quando se festeja a mudança das sortes quando os judeus, apontados ao extermínio, foram salvos pela corajosa intercessão de Ester junto do rei Assuero. E, por fim, a grande festa de Pesach, da Páscoa de libertação do povo da escravidão do Egito, que é soleníssima, tal como entre nós, a que se segue a festa do Pentecostes, da Simchat-Torá, ou seja, da “alegria-pelo-dom-da-Lei”.


Se cada família souber, de alguma maneira, dar um só sinal que seja para cada uma destas festas – não só na oração, mas também na alimentação, nos pequenos presentes, em alguns ornamentos exteriores –, eis que a criança aprenderá sem precisar de especiais artifícios de memória



Cada uma destas festas é vivida em família com especial intensidade. Cada uma tem as suas orações específicas, que a mãe faz recitar a toda a família, a todas as crianças. Para cada uma há jogos, cantos e cores próprios. E as crianças aprendem assim, celebrando na vida, ouvindo contar a história do povo e deste Deus misericordiosos, próximo, fiel, presente, através da experiência quotidiana.
Regressando a nós, certamente são muito importantes o catecismo e a catequese, e como eu gostaria que esta fosse promovida e realizada de maneira vigorosa! Mas devemos também voltar a apostar na transmissão em família. E também aqui não pretendo que os pais se transformem em pequenos teólogos que ensinam fórmulas para memorizar – o que pode ser aplicado a quantos são capazes disso –, mas sobretudo para que os pais façam rezar os filhos e celebrem com eles as festas litúrgicas no tempo e modo devidos. Temos muitíssimas ocasiões esplêndidas: o Advento, o Natal, a Quaresma, a Páscoa, o Pentecostes, o mês de maio, as festas de Nossa Senhora, as festas dos santos, as festas do padroeiro.
Se cada família souber, de alguma maneira, dar um só sinal que seja para cada uma destas festas – não só na oração, mas também na alimentação, nos pequenos presentes, em alguns ornamentos exteriores –, eis que a criança aprenderá sem precisar de especiais artifícios de memória, porque esta fixar-se-á indelevelmente nas coisas, na experiência vivida, e portanto memorável, permitindo-lhe entrar de maneira gradual, apelativa, alegre, no ambiente, no mundo da fé. E é assim que Paulo podia contar com a fé de Timóteo e dizer-lhe: «A fé que recebeste da tua mãe e da tua avó, e que agora está também em ti».
Peçamos, por isso, esta graça: que as nossas famílias saibam ensinar assim a catequese. É fácil, pelo menos não é assim tão difícil, fazer rezar as crianças, começando precisamente com algumas orações ligadas sobretudo às festas, aos acontecimentos principais. E desta maneira, aos poucos, aquele pensamento de Deus hoje tão distante do mundo ocidental, por vezes apresentado de maneira tão abstrata, tornar-se-á de novo concreto e vital; e então acontecerá a alegria sentida por quem vive a fé profunda em Deus, em Jesus; de quem vive a alegria da ressurreição do Senhor, a expetativa pelo seu regresso, a plenitude da graça de Deus derramada por toda a humanidade.


Card. Carlo Maria Martini
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: koloz/Bigstock.com
Publicado em 29.03.2020


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