A praça de S. Pedro nunca esteve tão cheia: Uma oração para não mais esquecer

Talvez a praça de S. Pedro nunca tenha estado tão cheia como nesta sexta-feira de Quaresma.
Com Roma a ser o cenário de uma humanidade amedrontada que olha, até para além das convicções religiosas, para o poder humilde de Deus que o papa Francisco mostrou à cidade e ao mundo [“urbi et orbi”], orientando o gesto eucarístico abençoador do ostensório para os quatro pontos cardeais.
Também através de uma nova formulação para a concessão da indulgência plenária, a bênção do sucessor de Pedro chegou verdadeiramente, através dos meios de comunicação, até a quem não pôde estar “presente”. Não pôde por estar doente. Porque estava empenhado na primeira linha a servir quem precisa. Não pôde por ser pobre. Talvez por estar exausto, preocupado, desiludido, com medo, talvez até “enraivecido” com Deus.
Basta unir-se «só espiritualmente, com o desejo» – assegurou o cardeal Angelo Comastri, arcipreste da basílica de S. Pedro – à bênção eucarística silenciosa que chegou até cada mulher e cada homem, onde quer que estivesse a viver aquela hora.
O momento extraordinário de oração querido pelo bispo de Roma começou com uma imagem dilacerante na sua essencialidade: em plena pandemia, e debaixo da chuva, o papa Francisco subiu ao adro da basílica de S. Pedro. A passo. Só. E não é ceder à retórica – tentação nestas horas muito forte, mas que faria perder de vista aquilo que conta, ou seja, a oração – afirmar que o sucessor de Pedro não estava sozinho. Talvez nunca como desta vez tantas mulheres e homens estavam com ele. Verdadeiramente.


Foi tocante a atitude com que Francisco rezou diante do crucifixo de S. Marcelo – de traços muito realistas. O papa contemplou-o, depois beijou-lhes os pés, e com a mão com que tinha acariciado o lenho traçou sobre si o sinal da cruz



Do centro do adro, com o sinal da cruz o papa convidou à oração. A leitura do Evangelho segundo Marcos (4,35-41), que narra o episódio da tempestade acalmada por Jesus, orientou a meditação do papa que brotou da escuta da Palavra de Deus.
A segunda parte deste momento de oração autenticamente universal ocorreu no átrio da basílica petrina. Acompanhado pelo mestre das celebrações litúrgicas pontifícias, Francisco “saudou” primeiramente os seus “companheiros de viagem” – seus e de todos – nesta “aventura”, encontrando-se com eles, tu a tu: o crucifixo de S. Marcelo e o ícone de Maria “Salus populi romani”, “salvação do povo romano”. O papa tinha ido pessoalmente ao seu encontro a 15 de março, na peregrinação silenciosa pelas ruas de Roma. Mas para esta extraordinária oração qui-los junto de si. Junto de todos.
Acompanhado pelo antigo canto “Sub tuum praesidium” (sob a vossa proteção), o papa recolheu-se, sozinho, antes de tudo, em oração diante da imagem mariana, particularmente querida aos romanos e a ele próprio, a tal ponto que dela faz meta espiritual de inúmeras peregrinações à basílica de Santa Maria Maior, onde é venerada.
Foi tocante a atitude com que Francisco rezou diante do crucifixo de S. Marcelo – de traços muito realistas –, emblema de esperança porque ligado à memória do fim da peste de há quinhentos anos. O papa contemplou-o, depois beijou-lhes os pés, e com a mão com que tinha acariciado o lenho traçou sobre si o sinal da cruz. Gestos acompanhados pelo canto da antífona à cruz, expressão das procissões penitenciais.


Enquanto ressoavam as notas do canto eucarístico “Tantum ergo”, o papa Francisco agarrou no ostensório e mostrou-o ao mundo. Verdadeiramente “urbi et orbi”. Para uma bênção em que não teve de pronunciar uma única palavra. Não era preciso



Sobre o altar “móvel” de Leão XIII, no centro do átrio da basílica, foi exposto o Santíssimo Sacramento para a adoração, num ostensório, do século XIX, que faz parte da sacristia pontifícia, e é utilizado também para a solenidade do Corpo de Deus. Foi um momento de forte intensidade, apoiado pelo canto “Adoro te devote”. Francisco quis revestir-se de paramentos simples, austeras: o pluvial tecido em S. João Rotondo, com um véu umeral do século XIX.
Na intensa e instante súplica litânica foram apresentados a Deus «todos os males que afligem a humanidade»: fome, carestia, egoísmo, doenças, epidemias, o medo do irmão, a loucura devastadora, os interesses desapiedados, a violência, os enganos. Também a má informação e a manipulação das consciências. Com humilde força, foi pedido ao Senhor para olhar «a Igreja que atravessa o deserto; a humanidade aterrada pelo medo e pela angústia; os doentes e os moribundos oprimidos pela solidão; os médicos e os agentes de saúde, esgotados pelo cansaço; os políticos e os administradores que carregam o peso das escolhas».
Não faltou a invocação para que Deus conceda o seu Espírito nesta «hora de provação e perturbação; na tentação e na fragilidade; no combate contra o mal e o pecado; na procura do verdadeiro bem e da verdadeira alegria; na decisão de permanecer nele e na sua amizade». E concluiu-se com o sentido pedido a Deus para abrir todos à esperança «se o pecado nos oprime, se o ódio nos fecha o coração, se a dor nos visita, se a indiferença nos angustia, se a morte nos aniquila».
Enquanto ressoavam as notas do canto eucarístico “Tantum ergo”, o papa Francisco agarrou no ostensório e mostrou-o ao mundo. Verdadeiramente “urbi et orbi”. Para uma bênção em que não teve de pronunciar uma única palavra. Não era preciso. Cristo basta: o papa mostrou-o da cancela central da basílica de S. Pedro, e é como se “os braços” da colunata tivessem sido os intermediários para levar aquela bênção a cada pessoa. Ninguém excluído. Todos incluídos no abraço. Entre o repicar dos sinos de S. Pedro e sirene de uma ambulância que corria pelas ruas de Roma.



Giampaolo Mattei
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Papa Francisco | Praça de S. Pedro, Vaticano, 27.3.2020 | D.R.
Publicado em 29.03.2020


SNPC

Comentários