D. António Marto: Debate da eutanásia no Parlamento sem debate na sociedade é “uma traição ao povo”

O cardeal defende, em entrevista exclusiva à Renascença, que o debate sobre a eutanásia deve “envolver toda a sociedade”. O bispo de Leiria-Fátima “estranha” as várias iniciativas parlamentares, critica os eufemismos com que a eutanásia é apresentada e afirma que “a sociedade não pode ficar indiferente”.

Como avalia esta pressa manifestada pelo Parlamento em abordar a questão da eutanásia?

Avalio de modo muito estranho, porque se trata de uma questão que não é confessional, nem religiosa, mas sim uma questão profundamente humana porque toca o mais íntimo e profundo da pessoa humana, da dignidade da pessoa e da vida. Por isso, não pode ser deixada apenas à decisão de um grupo ou de meros representantes do povo. É uma questão que deve envolver toda a sociedade nos seus mais diversos aspetos, porque tem de ser analisada não só quanto aos valores que estão em causa, mas também quanto às consequências que daí podem derivar de uma lei de despenalização e que podem ser nefastas para a sociedade.
Então como se chegou a este ponto?
Isto é uma responsabilidade transversal, é de todos. A própria sociedade não pode ficar indiferente diante de um problema destes. E acontece que, durante a campanha eleitoral, os grandes partidos não trataram este tema, por conseguinte, penso que isso é uma traição ao próprio povo e à própria sociedade. Portanto, deve ser tratado com toda a seriedade, com toda a profundidade e não com leveza ou leviandade, seja de pensamento, seja de atitudes.
Gostaria que houvesse uma manifestação pública sobre o assunto, por exemplo um referendo, ou que as pessoas saíssem à rua?
Penso que deve haver um debate a nível nacional, seja através do referendo, ou não. Isso depende dos cidadãos. A Igreja, como princípio, entende que a vida humana não é referendável, porque vale por si e não pode estar sujeita à opinião de um mero referendo. Mas deve implicar um debate a nível social, em que todos possam tomar consciência de tudo aquilo que está em causa. Temos, por exemplo, a Ordem dos Médicos que se pronuncia abertamente contra a eutanásia; temos, por exemplo, a manifestação [de quarta-feira] do conjunto das religiões aqui em Portugal, que já tomaram posição e que vão reafirmá-la diante da sociedade...
Outras religiões e até ateus e agnósticos, ou seja, não é uma questão religiosa...
Sim, são organizações e grupos não confessionais que tomam partido a favor do amor e do respeito pela vida humana e, por conseguinte, contra a supressão da vida humana para eliminar o sofrimento. Porque trata-se de eliminar a pessoa para eliminar o sofrimento, não é, quando há outros meios mais dignos e mais justos para responder a este problema.
Considera que existe muita confusão à volta deste assunto?
Existe muita confusão relativamente aos conceitos do que é e do que não é a eutanásia, bem como ao uso de certos eufemismos por determinados partidos ou ideologias. Por exemplo, quando se quer confundir a eutanásia com "a morte medicamente assistida", toda a morte de qualquer ser humano deve ser medicamente assistida! Toda a gente concorda com isso.
Considera que se trata de uma manipulação de certas expressões, para levar a cabo um objetivo?
Exatamente! O mesmo se passa também com a expressão "morte digna", quando se fala em proporcionar a morte digna com a eutanásia. Ora, toda a morte humana é digna, tem de ser vivida com dignidade, como já pude afirmar relativamente ao conjunto de cuidados qualificados, para que seja vivida com toda a dignidade.
Os bispos portugueses já tinham manifestado esta preocupação com uma nota, agora surge uma nova tomada de posição. O que esperam e qual é a solução que propõem?
Reafirmamos aquela mesma posição sobre o amor, o respeito e a proteção da vida humana, na fase terminal e nas situações limites, e propõe-se uma resposta digna e justa, correspondente à dignidade da pessoa humana, que são os chamados cuidados paliativos que não se podem entender somente como o alívio da dor física, mas como um conjunto de apoios qualificados, do ponto de vista médico, psicológico, afetivo, familiar e também espiritual. Porque uma coisa é a dor, outra coisa é o sofrimento, que também precisa de receber conforto e apoio.
Na sua opinião, isso não avança por questões políticas e económicas?
Esta questão dos cuidados paliativos, entendidos assim, num ponto de vista global, deveria ser a prioridade das prioridades do Estado, em relação a este problema e a estas situações limite. E não a resolvê-la pela solução mais rápida ou mais económica, porventura, em que a vida humana é submetida ao critério da sua eficiência ou da sua utilidade e que pode levar as pessoas e as próprias famílias a considerá-la se é ou não um peso a mais, quer no ambiente familiar, quer na sociedade.
E nesse contexto de sofrimento, qual é a palavra que a Igreja tem a dizer a quem tem circunstâncias assim, de peso e de sofrimento, que parecem não ter fim?
São exatamente estes cuidados paliativos que, hoje em dia, podem eliminar toda a dor e, por vezes, até podem levar a situações limite de sedação paliativa. Mas não basta, é preciso também o apoio psicológico, o apoio afetivo, o apoio familiar porque, muitas vezes, também é duro para os familiares. E esses precisam igualmente desse apoio para darem um sentido a esse momento, porventura, de dor e de sofrimento.
Isso é o que tem já vindo a defender há uns tempos. Não se sente uma voz que brada no deserto?
Nunca podemos deixar de falar. Ninguém pode esperar de um servidor do Evangelho que esteja contra a vida. Por conseguinte, estarei sempre ao lado da vida. E peço também a todos que estejam ao lado da vida nos seus limites, nas situações limites, com amor, respeito e o conforto que é devido a todos.

RENASCENÇA 

 

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