«Ainda bem que não morri»

«Já aconteceu um doente dos paliativos pedir-lhe ajuda para morrer?» «Sim, várias vezes. Numa delas, um jovem com um tumor metastizado disse que queria ser morto e até marcou a data.
Na semana seguinte, estava a dizer: “Ainda bem que não morri”, e a fazer aviões com os sobrinhos».
Quem responde à pergunta e conta esta história é a presidente da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, Edna Gonçalves, em entrevista publicada este domingo no “Público”, na qual se assume «contra a eutanásia, com ou sem cuidados paliativos».
«Porquê? Porque é passar a linha vermelha. É dar aos médicos um poder que não podem ter. A possibilidade que se discute na Holanda de dar uma pílula às pessoas com 70 anos é arrepiante. Só de pensar nisso reforço a ideia de que a eutanásia nunca pode ser legalizada. Porque a partir do momento em que ela é legalizada estamos a discutir coisas destas. Porquê aos 70? E porque não aos 18? Legalmente aos 18 é-se adulto», aponta.
A responsável acentua a escassez de profissionais nos cuidados paliativos, resultante da «falta de financiamento» e da «formação necessária», com doentes a esperar seis meses por uma consulta da especialidade.


«Temos experiências espetaculares de doentes que chegam com uma decisão de suspender os planos de tratamento para tentar curar a doença oncológica, por causa das complicações surgidas entretanto, e que, depois de internados no nosso serviço, ultrapassam a situação e vivem muito melhor»



«Nas equipas intra-hospitalares, só seis equipas, em 31, é que tinham 90% ou mais do rácio previsto em termos médicos. Onze equipas tinham menos de metade do número de médicos que deveriam ter. E este rácio já está definido muito por baixo», explica a também diretora do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital de São João, no Porto.
Edna Gonçalves defende que «enquanto não houver paliativos para toda a gente» é «impensável» estar-se «a matar pessoas que, pura e simplesmente, estão a pedir para morrer porque não sabem que podem ser mais bem tratadas. É como resolver o problema do desemprego, matando os desempregados».
«Temos experiências espetaculares de doentes que chegam com uma decisão de suspender os planos de tratamento para tentar curar a doença oncológica, por causa das complicações surgidas entretanto, e que, depois de internados no nosso serviço, ultrapassam a situação e vivem muito melhor».
Regressamos, para concluir, à história do início: «Numa fase mais final, [o doente] voltou a pedir [para morrer], e dissemos-lhe que não fazíamos eutanásia, mas, como ele estava numa situação de sofrimento atroz, propusemos uma sedação paliativa, negociámos com ele pô-lo uns dias a dormir, na lógica de poder descansar».
«Fizemos medicação como nunca tínhamos feito, até pedimos ajuda aos colegas da anestesia. E ele não se deixou dormir. Demos-lhe um crescendo de medicação e, apesar disso, ele, que nem queria comer, passou a acordar a todas as refeições. Ou seja, quando lhe demos a oportunidade de ficar anestesiado, sem sofrer, começou a lutar contra isso. Foi inacreditável. E isso mostra que, de facto, a nossa parte animal é muito forte. Depois acabou por desenvolver um quadro de delírio e morreu com uma pneumonia», descreveu Edna Gonçalves.


Rui Jorge Martins
Fonte: Público
Imagem: JegasRa/Bigstock.com
Publicado em 17.02.2020


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