«Vais ajudar-me não vais? Tenho a certeza que sim, porque tu amas-me muito»: Desolação, fragilidade e fé no “Correio de Fátima”

«Um país desconhecido, nunca até hoje revelado»; «um país tal como era vivido por franjas dos mais simples, pelos sem nome nem relevância, por quem a História nunca cita, a não ser enquanto números»; um país ainda com muitos sintomas de miséria social»;
«um país politicamente sintonizado com a linguagem do regime»: o santuário de Fátima preserva «oito milhões de segredos», «mensagens guardadas ao longo de décadas em que os devotos falam de guerra e paz, fé e descrença, amores proibidos, saúde e dinheiro, pais que se de dão mal… Fazem-no como quem conversa com a amiga mais íntima».
O “Correio de Nossa Senhora” está no centro de uma grande reportagem dos jornalistas António Marujo e Joaquim Franco, publicada na edição deste sábado da revista do semanário “Expresso”, e que terá versão televisiva na SIC a 9 e 16 de janeiro.
Numa cave da basílica da Santíssima Trindade, «cartas, bilhetes e todo o tipo de missivas» testemunham, com a intensidade que só corações aflitos e confiantes conhecem, os dramas de «tudo o que foi e é importante na vida de milhões de portugueses e estrangeiros: o regresso da guerra, são e salvo, do filho, neto, noivo ou namorado; que o pai deixe de maltratar a mãe; que o marido deixe a vida dissoluta; que a mulher aceite a família do cônjuge; o fim da pobreza ou o emprego necessário para uma vida digna; um noivado ou um namorado desejado; a resolução de problemas de saúde ou a passagem nos exames para os quais (pouco ou nada) se estudou… ou, até, o êxito do II Concílio do Vaticano, as necessidades e orações do papa, a Igreja…».
Ao longo das seis páginas do trabalho, que merecem o destaque da capa da revista, apresentam-se alguns exemplos, protegendo sempre a identidade do remetente/orante. Supõe-se que a dificuldade terá sido a escolha de excertos, dada a profusão do arquivo.


«MF, numa carta sem data, roga, sem rodeios: “Fazei com que eu tenha um emprego, que ganhe o suficiente para não me estar a vender. Com que arranje um rapaz, para eu amar respeitar e dar-lhe filhos”»



Múltiplas são as caligrafias, a descrição dos dramas pessoais – umas vezes mais longa e explicativo, outras sucinta - «não são necessárias grandes frases pois tu entendes sempre as nossas súplicas mesmo mudas que sejam» -, como variado é o mesmo sentido filial: «mãe, mãezinha, mãe adorada, querida mãezinha do céu, mãezinha querida, minha mãe santíssima, minha boa mãe, querida mamã».
A tradição, que se encontra noutros lugares de peregrinação religiosos, terá começado (a datação da missiva não é esclarecedora) no final da década de 1920, cerca de 12 anos após os acontecimentos na Cova da Iria, quando, em 1917, três crianças declararam ter visto por várias vezes Nossa Senhora.
A partir dos anos 1940 as cartas «vão-se tornando mais frequentes. Avolumam-se nas décadas seguintes, até à explosão desde o início deste século: em 1967, nos 50 anos de Fátima, foram enviados alguns milhares de mensagens, arquivadas hoje em meia dúzia de caixas; em 2017, no centenário, encheram-se quase 240 caixas com cerca de 807 mil registos de devotos».
Da década de 1940 até 1975, a parte investigada pelos jornalistas, as missivas do estrangeiro são sobretudo de Espanha, Itália, Brasil, Irlanda, EUA e França; «depois da década de 1980, torna-se avassalador o número de mensagens da Polónia, país natal do papa João Paulo II, que tanto ajudou a internacionalizar Fátima»; e há também missivas de países como Camarões, Sri Lanka, Vietname.


Confessa-se a fraqueza, os pecados, o arrependimento, lembrando as palavras de S. Paulo: «Não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico»



O teor dos registos é diverso: «abundam as mensagens de gratidão por “graças recebidas” ou os pedidos por necessidades» próprias ou de outras pessoas. As dificuldades da vida são muitas vezes ingentes, desde a saúde ao plano económico, arrasando a dignidade humana: «MF, numa carta sem data, roga, sem rodeios: “Fazei com que eu tenha um emprego, que ganhe o suficiente para não me estar a vender. Com que arranje um rapaz, para eu amar respeitar e dar-lhe filhos”».
Nas crianças expressam-se sacrifícios – ou «ramalhetes espirituais, lista de devoções ou pequenos gestos de abnegação (…), por vezes implicando esforços físicos»; torna-se manifesto o medo do castigo dos pais por não se transitar de ano escolar, ou preces para que o pai e a mãe se voltem a juntar.
Confessa-se a fraqueza, os pecados, o arrependimento, lembrando as palavras de S. Paulo: «Não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico». Mas também o desejo de acreditar mais em Deus, a vontade de mudar de vida, apesar das dúvidas e do cansaço: «Olha eu não sei o que dizer-te na verdade não sinto nada por ti, mas quero amar-te, amar-te muito porque sei que me amas e és minha mãe. Quero ter-te como modelo, quero sentir algo grande por ti. Vais ajudar-me não vais? Tenho a certeza que sim, porque tu amas-me muito. Adeus mãezinha um beijo da L».


Rui Jorge Martins
Fonte: Expresso
Imagem: José Fernandes/Expresso | D.R.
Publicado em 06.01.2020


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