«Tu fizeste-nos para ti, Senhor, e o nosso coração não tem paz
enquanto não repousa em ti.»
Esta afirmação de Agostinho (“Confissões”), célebre e repetida de geração em geração, pode recapitular bem o fundamento colocado na oração cristã desde a época dos grandes Padres até aos nossos dias. Nessa visão, a oração exprime o desejo do bem supremo que habita o ser humano, e é entendida como movimento do coração para o infinito, o eterno, o absoluto. Dela deduz-se uma definição acolhida substancialmente, ainda que com cambiantes diferentes, por todos os autores espirituais do Oriente e do Ocidente: «A oração é a elevação da alma a Deus, ou o pedido a Deus de bens convenientes», como escrevia sinteticamente João Damasceno, definição retomada no Ocidente por Tomás de Aquino.
Hoje, esta definição da oração como acontecimento colocado no espaço da busca de Deus da parte do ser humano parece não ser desmentida, mas é, pelo menos, insuficiente, porque os homens e as mulheres do nosso tempo, em particular pertencentes às novas gerações, são alérgicas às conceções ascendentes e “verticais” disseminadas em toda a espiritualidade cristã. Essa insuficiência pode ser salutar, na medida em que nos ajuda a focalizar um dado bem presente ao homem bíblico: a Presença de Deus é dada, não é plasmada ou alcançada pelo ser humano com as suas forças, e ao ser humano cabe o acolhimento da manifestação de Deus, tal como do seu retirar-se no silêncio ou no escondimento.
Esta afirmação de Agostinho (“Confissões”), célebre e repetida de geração em geração, pode recapitular bem o fundamento colocado na oração cristã desde a época dos grandes Padres até aos nossos dias. Nessa visão, a oração exprime o desejo do bem supremo que habita o ser humano, e é entendida como movimento do coração para o infinito, o eterno, o absoluto. Dela deduz-se uma definição acolhida substancialmente, ainda que com cambiantes diferentes, por todos os autores espirituais do Oriente e do Ocidente: «A oração é a elevação da alma a Deus, ou o pedido a Deus de bens convenientes», como escrevia sinteticamente João Damasceno, definição retomada no Ocidente por Tomás de Aquino.
Hoje, esta definição da oração como acontecimento colocado no espaço da busca de Deus da parte do ser humano parece não ser desmentida, mas é, pelo menos, insuficiente, porque os homens e as mulheres do nosso tempo, em particular pertencentes às novas gerações, são alérgicas às conceções ascendentes e “verticais” disseminadas em toda a espiritualidade cristã. Essa insuficiência pode ser salutar, na medida em que nos ajuda a focalizar um dado bem presente ao homem bíblico: a Presença de Deus é dada, não é plasmada ou alcançada pelo ser humano com as suas forças, e ao ser humano cabe o acolhimento da manifestação de Deus, tal como do seu retirar-se no silêncio ou no escondimento.
Com decisão absoluta, com iniciativa livre e gratuita, Deus dirigiu-se
aos seres humanos para entrar em relação com eles, para instaurar um
diálogo que tem por meta a comunhão
Por outras palavras, o Deus da revelação bíblica não é o objeto da nossa procura, mas é aquele que tem a iniciativa, é o sujeito, é o Deus vivo que não está no termo do nosso raciocínio, não se encontra na lógica dos nossos conceitos, mas dá-se, entrega-se na liberdade amorosa dos seus atos, que o mostram em constante busca do ser humano. É Ele que deseja e estabelece um diálogo connosco, é Ele que do Génesis ao Apocalipse vem, procura, chama, interroga o ser humano, pedindo-lhe simplesmente para ser escutado e acolhido. O Deus que «nos amou por primeiro» fala, dando início ao diálogo; o ser humano, diante desta autorrevelação de Deus na história, “re-age” na fé através da bênção, do louvor, da ação de graças, da adoração, do pedido, da confissão do seu pecado… Em síntese, reage através da oração, que é sempre resposta a Deus, com a finalidade do amor para Ele e para os irmãos.
É tendo em conta esta perspetiva, menos explorada pela tradição explorada, que gostaria não tanto redefinir a oração cristã, porque ela escapa a toda a “fórmula”, mas recoloca-la, com muita humildade, no alvéolo bíblico. Nele emerge claramente que a oração não é procura de Deus, mas resposta; que as suas formas são acidentes, enquanto que o que é substancial é a relação com Deus; que o seu fim é a caridade, o amor: a oração é uma abertura à comunhão com Deus, e por isso ao amor, porque «Deus é amor» (1 João 4,8.16). O “eu” que responde a Deus é definitivamente descentrado na oração, ao passo que o agente, o sujeito, é o próprio Deus, que, ao derramar na oração o seu amor, efunde-o no mundo através de nós, constituídos amantes.
Deus revela-se como Palavra e faz de Israel o povo da escuta, antes
ainda que povo da fé, desvelando a vocação permanente: o chamamento a
escutar
Nesta ótica, a oração cristã é antes de tudo escuta para chegar ao acolhimento de uma presença, a presença de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. A operação é simples, mas não é por isso que é fácil, pelo contrário, é árdua e requer capacidade de silêncio interior e exterior, sobriedade, luta contra os múltiplos ídolos que nos ameaçam.
Deus fala: esta é a afirmação fundamental que atravessa toda a Escritura, é “the big thing” sem a qual nós não poderemos ter qualquer relação pessoal com Ele. Com decisão absoluta, com iniciativa livre e gratuita, Deus dirigiu-se aos seres humanos para entrar em relação com eles, para instaurar um diálogo que tem por meta a comunhão. No Deuteronómio é colocada na boca de Moisés esta reflexão:
«Interroga os tempos antigos que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra. Pergunta se jamais houve, de uma extremidade à outra do céu, coisa tão extraordinária como esta, ou se jamais se ouviu coisa semelhante. Sabes, porventura, de algum povo que tenha ouvido a voz de Deus falando do meio do fogo, como tu ouviste, e tenha continuado a viver?» (4,32.33).
É significativo que, ao convite dirigido por Deus para lhe apresentar
pedidos, o jovem rei Salomão tenha replicado pedindo um “lev shomea’”,
«um coração capaz de escutar»
Deus revela-se como Palavra e faz de Israel o povo da escuta, antes ainda que povo da fé, desvelando a vocação permanente: o chamamento a escutar. Não é por acaso que a oração judaica é ritmada pelo “Shema’ Jisra’el”, pelo «escuta, Israel», uma ordem que, em várias formas, é repetido várias vezes na Torá, a qual, ao contrário, raramente pede para falar a Deus.
Se a oração do ser humano como desejo de Deus apresenta um movimento ascendente de palavras para o céu, a escuta é, ao invés, caracterizada por um movimento descendente, por uma descida da Palavra de Deus ao ser humano: o verdadeiro orante, a partir de Abraão, é aquele que escuta, aquele que dá ouvidos a Deus. Por isso, «escutar é melhor que o sacrifício», isto é, melhor que qualquer outra relação homem-Deus que se apoie sobre o frágil fundamento da iniciativa humana.
Além disso, poder-se-ia dizer que se para Deus «no princípio está a Palavra», para o ser humano no princípio está a escuta! No Novo Testamento, esta verdade é sintetizada de modo admirável no exórdio da Carta aos Hebreus: «Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho» (1,1-2); agora é para Ele, para o Filho, que deve orientar-se a nossa escuta, no seguimento da ordem da voz do Pai: «Este é o meu Filho, o amado, escutai-o!» (Marcos 9,7).
Nunca se dirá suficientemente: onde não está bem claro o primado da
escuta de Deus, a oração tende a tornar-se uma atividade humana, e é
constrangida a alimentar-se de atos e fórmulas
É claro, portanto, que a oração autêntica germina onde está a escuta. «Fala, Senhor, porque o teu servo escuta-te» (1 Samuel 3,9): este é o primeiro ato da oração, que nós – infelizmente – estamos constantemente tentados a inverter: «Escuta, Senhor, porque o teu servo fala». Sim, a escuta é oração e tem um primado absoluto, enquanto reconhece a iniciativa de Deus, o facto de Deus ser o sujeito do nosso encontro com Ele: não é passividade, mas resposta ativa, ação por excelência da criatura em relação ao seu Criador e Senhor.
É significativo que, ao convite dirigido por Deus para lhe apresentar pedidos, o jovem rei Salomão tenha replicado pedindo um “lev shomea’”, «um coração capaz de escutar»; e ao Senhor agradou esta oração. É, com efeito, o pedido altamente grato ao Senhor na nossa oração, porque é o pedido que é gerado pela vontade de Deus, é o pedido primordial, a necessidade primeira e fundamental, o pressuposto da fé: não por acaso, Paulo dirá que «a fé nasce da escuta». Compreende-se, então, porque, interrogado sobre qual era o primeiro mandamento, Jesus tenha respondido, antes de tudo, «escuta!», bem sabendo que de tal capacidade descende também a de conhecer e amar o Senhor Deus e o próximo.
Eis assim delineado o movimento da oração cristã: da escuta à fé, da fé ao conhecimento de Deus, e do conhecimento ao amor, resposta última ao seu amor gratuito e primeiro pelo ser humano. Nunca se dirá suficientemente: onde não está bem claro o primado da escuta de Deus, a oração tende a tornar-se uma atividade humana, e é constrangida a alimentar-se de atos e fórmulas, na qual a pessoa procura a sua satisfação e segurança; torna-se a manifestação de uma arrogância espiritual, o substituto da própria execução da vontade de Deus. No melhor dos casos transforma-se numa disciplina de concentração que talvez elimine as distrações, mas não abre realmente a uma atenção orante ao Senhor que fala e que ama: que fala porque ama!
É preciso, por fim recordar um dado do qual é mais difícil assumir a consciência, mas que sempre “envolve” a nossa oração: com a escuta da Palavra, nós entramos no mistério do diálogo intratrinitário. A comunhão de amor que reina entre o Pai, o Filho e o Espírito é, efetivamente, alimentada pela escuta recíproca, como atestam algumas palavras de Jesus: «Tudo o que escutei do Pai, dei-o a conhecer a vós» (João 15,15); «quando vier o Espírito de verdade (…) não falará de si, mas dirá tudo aquilo que tiver escutado» (João 16,13); «Pai, dou-te graças porque me escutaste? (João 11,41).
Enzo Bianchi
In Perché pregare, come pregare, ed. San Paolo
Trad.: Rui Jorge Martins:
Imagem: Sunrise Studios/Bigstock.com
Publicado em 29.01.2020
SNPC
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