Homens e mulheres de boa vontade: Que pontes estabelecer?

Penso que todos facilmente podemos chegar à conclusão que é necessário um novo ardor no amor pelo Homem e pela Humanidade de hoje, ardor esse que fica tantas vezes obnubilado pela carga institucional e administrativa que as nossas vidas de pastores adquiriram e, com elas, a vida de muitos cristãos das nossas comunidades.
Todavia, não tenhamos dúvida de uma coisa: é tanto mais difícil amar o Homem de hoje quanto menos dos detemos a contemplá-lo, olhá-lo e compreendê-lo nas suas velozes mutações e nas suas dramáticas situações.
Deste modo, como veremos mais adiante, pensar nos homens e mulheres de boa vontade e com eles, nos dramas e nas oportunidades da humanidade, implica descentralizar o nosso olhar e as nossas preocupações, implica sair de nós mesmos para ir mais além, pois a Igreja é tanto mais fiel à sua identidade e missão quanto mais sair de si mesma. Podemos mesmo afirmar que é necessário e urgente aquele ardor que seja capaz de incarnar aquela expressão e atitude de Jesus que, olhando Jerusalém (a incapacidade de esta acolher n'Ele a Salvação de Deus, bem como as consequências dramáticas dessa incredulidade), leva-O a chorar, como nos é dado contemplar nos Evangelhos. Contudo, nem por isso diminui n’Ele a disponibilidade para compreende, amar e dar a vida por todos: pelos que o acolhem e pelos que o rejeitam, pelos que o amam e pelos que o desconhecem.
Este Homem, quer amando quer rejeitando Jesus, foi e é a Sua via e, inquestionavelmente, terá que ser a vida da Igreja, a nossa via, o caminho que queremos percorrer. Para isso, teremos que retomar a sério as palavras do Papa João Paulo II quando afirma que «sendo este homem a via da Igreja, via da sua vida e experiência quotidianas, da sua missão e atividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da situação de tal homem. E mais: a Igreja deve estar bem ciente das suas possibilidades, que tomam sempre nova orientação e assim se manifestam; ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda, das ameaças que se apresentam contra o homem» (…).
Finalmente, somos convidados a fazer a seguinte pergunta fundamental: quem são, na verdade, os homens e mulheres de boa vontade? Por homens e mulheres de boa vontade devemos entender aquelas pessoas que sendo crentes de uma outra religião ou mesmo não crentes comungam das mesmas ideias e valores a respeito da humanidade, da dignidade do homem, daqueles valores como a paz, a justiça, a liberdade, entre outros, que se podem conter no âmbito da promoção humana e da doutrina social da Igreja. São homens e mulheres que não sendo cristãos ou sendo descrentes, têm perspetivas comuns às da Igreja a respeito da humanidade e da dignidade que se deve revestir a vida humana nas suas mais variadas situações. E aqui, penso eu, não nos faltam pessoas em vários campos da vida: da educação à saúde, das questões sociais à cultura, entre outros.

Como compreender estes homens e mulheres na nossa relação connosco?
Sugiro que para responder a esta questão, o façamos sob três perspetivas.
a) Auxílio à nossa compreensão sobre a humanidade
Em primeiro lugar, devemos pensá-los como um precioso auxílio para melhor podermos compreender o que se vai passando na vida e no coração da humanidade, nos seus mais variados campos. Quantas vezes, nós, sem sermos peritos ou sem vivermos por dentro de determinadas realidades, tecemos considerações, compreensões e juízos sobre a vida dos homens sem um necessário e credível fundamento? Deste modo, muito nos apoiaria e seria útil munirmo-nos de pessoas que, ainda que estando fora do nosso âmbito eclesial ou religioso, nos poderiam ajudar a compreender diversas realidades do mundo dos homens do nosso tempo. Aliás, essa é a perspetiva conciliar que reconhece o quanto a Igreja recebe e aprende com homens e mulheres de outras crenças ou mesmo não-crentes?. Por isso, cabe-nos o desafio permanente de pensarmos em homens e mulheres de boa vontade como um precioso auxílio para compreendermos de verdade os dramas da humanidade, para entrarmos de modo mais adequado num justo diálogo com a mesma e para podermos servir melhor os homens e mulheres do nosso tempo na sua busca da Verdade.
b) Contributo para a eficácia da nossa missão
Devemos também compreendê-los e vê-los como um contributo (no sentido de aliados) que muito nos podem ajudar à da nossa missão. Estou certo que, em determinadas situações, poderemos contar com a ajuda de alguns para podermos chegar não só à compreensão teórica de determinadas situações da humana, mas para chegarmos e atuarmos nelas. Aqui trata-se precisamente disso: encontramos nos homens e mulheres de boa vontade não somente pessoas que nos ajudem a compreender, mas se tornem concretamente cooperadores e pontes na nossa atuação pastoral junto de outros a quem, de outro modo, é mais difícil chegar.
c) Destinatários da nossa missão
Além disso, porque a nossa primordial vocação é anunciar Cristo e o Seu Evangelho, nunca poderemos deixar de os ter e ver também como destinatários de Cristo e, por isso mesmo, da nossa ação pastoral. Não tem que ser necessariamente a primeira de todas as perspetivas, mas jamais poderemos deixar de a considerar, pois a estes homens e mulheres de boa vontade se destina igualmente a Salvação de Deus. (…)

Lugares onde estabelecer pontes
Não sendo possível determo-nos longamente no trabalho de indicar lugares ou realidades onde estabelecer relação com os homens e mulheres de boa vontade, referirei apenas alguns deles, aos quais farei algumas apreciações.
a) O diálogo inter-religioso
Começo pelo diálogo inter-religioso como ponte necessária a estabelecer. Este é, na verdade, um campo em que é urgente empreender mais esforços. E não faltam nalgumas das cidades das nossas dioceses grupos e comunidades de outras religiões. Partir daquilo que nos une e temos em comum, é o ponto-chave para que aconteça realmente este diálogo. E não nos faltam exemplos de que é possível: um deles foi precisamente a capacidade de várias religiões e confissões religiosas presentes em Portugal se unirem para assinarem a declaração comum a respeito da eutanásia. Eu próprio pude experienciar e participar numa ação levada a cabo por um aluno da Universidade do Algarve em que, com um irmão um muçulmano, abordámos o tema da família, num encontro com estudantes e professores universitários. A verdade é que pensando nas nossas dioceses (…), de modo particular aquelas com maior presença de imigrantes vindos de várias partes do mundo, esta deve ser uma situação a ter em conta.
b) O mundo da saúde
Em segundo lugar, mas que é hoje de importância capital, temos o mundo da saúde. Este é um daqueles lugares em que, como sabemos, se espelha o drama da humanidade diante do sofrimento, das limitações humanas, do sentido da vida, da visão e do medo da morte, entre outros. É um lugar vasto, onde se joga de um modo tenso e profundo o destino do Homem. E é vasto, tanto olhando para quem sofre como para quem tem por missão servir o Homem nos seus sofrimentos e lutas. Aqui podemos incluir temas que tocam a todos como a morte e o sentido da vida, o sofrimento e a esperança. Como temos entrado em diálogo e nos temos valido de homens e mulheres de boa vontade que trabalham neste campo para desenvolver espaços que ajudem a comunidade cristã (e para além dela mesma) a compreender e a responder às mais diversas situações dramáticas do Homem? Penso, por exemplo, no luto ou no sentido da vida diante de sofrimentos mais difíceis de aceitar. Mas também podemos incluir neste mundo da saúde, temas em discussão nas sociedades contemporâneas: a eutanásia o aborto, a ideologia de género, entre outros. Como Igreja, temos erguido a voz quando estas questões vão a votos; mas onde estamos e que promovemos no restante tempo? E como dialogamos, estabelecemos relação e nos fazemos acompanhar ou valer de homens e mulheres de boa vontade que comungam das mesmas certezas que nós temos a respeito do valor da vida e que operam na primeira pessoa com estas situações? É um mundo em que contamos com muitos cristãos, mas para além destes, também com muitos homens e mulheres de boa vontade que não sendo cristãos ou nem mesmo crentes, podem estar dispostos a colaborar connosco.
c) Educação
Este é um outro campo de proporções vastas. Desde as dificuldades dos pais na educação, passando pelas exigências dos educadores de hoje e chegando ao mundo universitário (lugar de formação de consciências), há tanto a compreender por nós. Neste mesmo campo, existem homens e mulheres que são peritos, que vivem e estudam estas áreas e que podem ser um precioso contributo. Estabelecer pontes com estes homens e mulheres é não só manifestar efetivamente o nosso desejo de contribuir para um desenvolvimento integral da pessoa, como fazer valer ou colocar em diálogo aqueles que entendem e passam por esta realidade educativa e juvenil.
d) As situações sociais
Aqui não me refiro propriamente às nossas instituições sociais (as chamadas IPSS e outras), mas àquelas situações sociais que podem existir nas nossas comunidades-localidades, sobretudo, quando habitadas por bairros onde situações problemáticas podem estar presentes, bem como a situações de solidão ou situações de dependências que degradam a dignidade humana. Aqui, a Igreja é chamada a agir fazendo ponte com homens e mulheres que nos podem ajudar a compreender estes mundos; mas também somos chamados a ser ponte. A promoção humana deve ser entendida como evangelização e dentro da missão evangelizadora, pois não se dá uma sem a outra. E podemos estar a correr o risco de nos fecharmos em dois quartéis, deixando de ter presente na nossa programação e ação pastoral este cuidado evangelizador pela promoção humana. Um primeiro quartel é aquele em que tudo acontece nos espaços físicos das nossas paróquias: lá celebramos, lá transmitimos a fé e lá fazemos a caridade, pois os pobres, em determinados casos, vão e dirigem-se às nossas instituições para fazer face às suas necessidades. O outro quartel são os nossos Centros Sociais: são instituições que muito fazem e que muito nos exigem em esforço, mas que assumem um papel institucional não nos permitindo ir além disso. Porém, conheceremos de verdade as situações de determinados bairros ou zonas das nossas terras? E como nos temos implicado nelas? A Igreja tem de tomar parte também nestas situações que implicam as condições de vida e as situações marginais, para as quais nos podem ser um precioso auxílio, o diálogo e a relação com homens e mulheres de boa vontade que conhecem profundamente estas realidades e situações. (…)

Atitudes para uma sã relação com os homens e mulheres de boa vontade
Comecemos por refletir sobre o modo como nós, os pastores e connosco as nosas comunidades, devemos olhar estes homens e mulheres e qual a nossa postura diante deles. Estou convencido que necessitamos de purificar sempre o nosso olhar e o nosso coração para que, algumas situações menos bem sucedidas, não nos façam cair na desconfiança e no medo que nos levem a desistir daquilo a que o Papa Francisco nos exorta na “Evangelii gaudium”, quando diz que «a Igreja é chamada a ser servidora de um diálogo difícil».
Cooperação em vez de concorrência
O primeiro modo de olhar estes homens e mulheres de boa vontade é o da cooperação em vez da concorrência. A humanidade as questões a ela respeitantes não são só nossas e não devemos cair na tentação de em tudo ter o protagonismo ou sermos os melhores conhecedores. Tal como afirmou o Concílio Vaticano II, «todos os que de acordo com a vontade de Deus promovem a comunidade humana no plano familiar, cultural, da vida económica e social e também política, seja nacional ou internacional, prestam não pequena ajuda à comunidade eclesial, na medida em que esta depende das realidades exteriores».
Colaboradores e não apenas destinatários
o segundo modo de olhar, é vê-los não só como destinatários, mas também como colaboradores. Colaboradores, por exemplo, na compreensão de determinadas situações do viver humano nas quais possam ser peritos, mesmo sem serem cristãos ou crentes. Tal como afirmou Bento XVI, «segundo os crentes, o mundo não é fruto do acaso nem da necessidade, mas de um projeto de Deus. Daqui nasce o dever que os crentes têm de unir os seus esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade de outras religiões ou não-crentes, para que este nosso mundo corresponda efetivamente ao projeto divino: viver como uma família, sob o olhar do seu Criador». (…)

Uma linguagem adequada
Não sendo novidade este apelo a um alinguagem nova e adequada aos tempos e realidades de hoje, a verdade é que esta continua a ser uma dificuldade nossa. Ainda continuamos a falar uma linguagem que muitos não conseguem compreender. Ora, para falar uma linguagem que os outros possam compreender, implica conhecer a sua linguagem, ou seja, escutar de que falam e como falam, sendo que este seu falar é também expressão dos seus anseios. Há pouco tempo, o Papa Francisco, referindo-se a este ponto, pedia-nos o esforço para encontrarmos «uma linguagem adequada aos nossos tempos, em diálogo com a cultura, em diálogo com o coração das pessoas e, sobretudo, escutando muito». Este é um aspeto fundamental sem o qual será difícil estabelecer relação com os homens e mulheres de boa vontade do nosso tempo, já que eles, estando fora do mundo religioso, terão dificuldade em compreender-nos. E este é um esforço que eles terão sempre que fazer, mas que em primeiro lugar deve ser um serviço nosso em favor de um diálogo proveitoso com eles.

Diálogo
A segunda atitude com a qual fecho esta reflexão é a do diálogo. Um diálogo que se paute pela honestidade, pela seriedade, pelo desinteresse; um diálogo em que se saiba estar em pé de igualdade, no qual se saiba escutar e compreender, aceitando as diferenças como dom. Como afirmou Bento XVI, «o diálogo fecundo entre fé e razão não pode deixar de tornar mais eficaz a ação da caridade na sociedade, e constitui o quadro mais apropriado para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não-crentes na perspetiva comum de trabalhar pela justiça e a paz da humanidade». O diálogo, e todas as tentativas de diálogo da Igreja com o mundo e de modo particular com os homens e mulheres de boa vontade, deve ser entendido por nós como «realização da diaconia cristã que se insere na solicitude salvífica integral pelos seres humanos. Do centro da fé católica nasce um profundo respeito por todas as pessoas. Isto vale também para os seguidores de outros credos e para os não-crentes. Também eles devem ser para nós muito importantes. [...] A finalidade do diálogo é o encontro com o outro, que é diferente, a fim de não só entender em maior profundidade o próprio, mas também de conhecer verdadeiramente a riqueza do diferente. Por isso, o diálogo não é só um assunto meramente intelectual, mas uma forma de vida, uma busca comum da verdade da vida. Neste sentido, para os cristãos, diálogo significa transcender os seus limites em direção ao outro» (George Augustin). Por conseguinte, considero oportuno referir uma realidade que responde a esta atitude necessária do diálogo: o Átrio dos Gentios. O Átrio dos Gentios tem o preciso objetivo de gerar o diálogo sobre realidades humanas que tocam crentes e não crentes, numa busca comum da Verdade.

Conclusão
Em conclusão, os homens e mulheres de boa vontade devem entrar concretamente nos objetivos e finalidades das nossas programações pastorais paroquiais e diocesanas. Na verdade, com eles devemos estabelecer pontes, pois muito nos poderão ajudar a compreender o viver da humanidade a quem somos enviados como servidores. O mundo plural e complexo em que hoje vivemos, nos movemos e existimos só pode ser compreendido no esforço de um diálogo plural, onde o único bem é servir o Homem, pro­curando elevá-lo até Deus. E só se pode amar e servir bem, quando se compreender e nos fizermos compreender ao coração humano que está diante de nós: nisto nos serão bastante necessários os homens e mulheres de boa vontade.

Esta transcrição omite as notas de rodapé.



P. António Freitas
Seminário de S. José, Faro
In Eborensia - Revista do Instituto Superior de Teologia de Évora, n. 53 (2019)
Imagem: MikeMareen/Bigstock.com
Publicado em 03.01.2020


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