O neurocientista tem um novo livro, A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas,
que chega sexta-feira, 3 de Novembro, às livrarias portuguesas. Este é o
excerto de um capítulo intitulado “A crise”. No domingo publicaremos
uma entrevista ao cientista português.
Junto à margem do mar da Galileia, numa manhã de Inverno cheia de sol, a poucos passos da sinagoga de Cafarnaum onde Jesus de Nazaré falou aos seus seguidores, penso nos problemas longínquos do Império Romano mas sobretudo na crise actual da condição humana. É uma crise curiosa, pois embora as condições locais sejam distintas em cada ponto do mundo onde ocorre, as respostas que a definem são semelhantes, marcadas pela zanga, fúria e confronto violento, a par de apelos ao isolamento dos países e de uma preferência por governação autocrática.
Mas a crise é sobretudo decepcionante, pois não devia de todo estar a acontecer. Seria de esperar que pelo menos as sociedades mais avançadas tivessem ficado imunizadas pelos horrores da Segunda Guerra Mundial e pelas ameaças da Guerra Fria, e que tivessem encontrado maneiras de ultrapassar, de modo gradual e pacífico, quaisquer dos problemas que as culturas complexas necessariamente enfrentam. Pensando bem, deveríamos ter sido menos complacentes.
No entanto, para considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos, já para não dizer indiferentes ao drama dos restantes seres humanos que vivem na miséria. Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. Ao que parece, não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, “ser”. Parte das sociedades que celebram a ciência e a tecnologia modernas, e que mais lucram com elas, parece estar numa situação de bancarrota “espiritual”, tanto no sentido secular como religioso do termo. A julgar pela aceitação despreocupada das crises financeiras problemáticas – a bolha da Internet de 2000, os abusos hipotecários de 2007 e o colapso bancário de 2008 – parecem igualmente estar numa situação de bancarrota moral. Curiosamente, ou talvez não tanto, o nível de felicidade nas sociedades que mais beneficiaram com os espantosos progressos do nosso tempo mantém-se estável ou em declínio, caso possamos confiar nas respectivas avaliações.
Ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, o grande público das sociedades mais avançadas aceitou, com pouca ou nenhuma resistência, o tratamento cada vez mais deformado das notícias e das questões públicas concebidas para se enquadrarem no modelo de entretenimento da televisão e da rádio comerciais. As sociedades menos avançadas não têm demorado a imitar essa atitude. A conversão de quase todos os “media” de interesse público ao modelo lucrativo de negócios veio reduzir ainda mais a qualidade da informação. Embora uma sociedade viável deva preocupar-se com a forma como o Governo promove o bem-estar dos cidadãos, a noção de que se deve proceder a uma pausa diária de alguns minutos e fazer um esforço para se ficar a par das dificuldades e dos êxitos dos governos e dos cidadãos não só se tornou antiquada, como quase desapareceu. Quanto à noção de que devemos aprender algo sobre essas questões com seriedade e respeito, ela é, hoje em dia, um conceito estranho. A rádio e a televisão transformam cada questão governativa numa “história”, com a “forma” e o valor de entretenimento dessa história a contarem mais do que o seu conteúdo factual. Quando, em 1985, Neil Postman escreveu o seu livro Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business, ele fez um diagnóstico correcto, mas nem sonhava que sofreríamos tanto antes de morrer. O problema agravou-se com a redução de fundos para a educação pública e com o declínio previsível da preparação de cidadãos, e, no caso dos Estados Unidos, piorou com o repúdio, em 1987, da Fairness Doctrine, que desde 1949 requeria um tratamento equilibrado dos comentários políticos. O resultado, intensificado pelo declínio dos jornais impressos e pela ascensão e domínio quase absoluto por parte da comunicação digital e da televisão, é a carência profunda de conhecimentos pormenorizados e não-partidários dos assuntos públicos, a par do abandono gradual das práticas da reflexão ponderada e do discernimento sobre os factos. É preciso ter o cuidado de não exagerar a nostalgia por um tempo que nunca existiu por completo. Nem todo o público estaria seriamente informado, reflexivo e exigente. Nem todos os cidadãos tinham reverência pela verdade e pela nobreza de espírito, já para não falar de reverência pela vida. Não obstante, o presente colapso da consciência pública séria é problemático. As sociedades humanas encontram-se previsivelmente fragmentadas segundo uma variedade de medidas, como literacia, nível de habilitações, comportamento cívico, aspirações espirituais, liberdade de expressão, acesso à justiça, estatuto económico, saúde e segurança ambiental. Dadas as circunstâncias, torna-se mais difícil do que jamais foi encorajar o público a promover e a defender uma lista de valores, direitos e obrigações que não sejam negociáveis.
Dado o espantoso progresso dos novos media, o público tem a oportunidade de ficar a saber com mais pormenores do que nunca os factos por detrás das economias, o estado dos governos locais e globais, e o estado das sociedades em que vive, algo que, sem qualquer dúvida, se trata de uma vantagem que confere poder real; para além disso, a Internet fornece meios de deliberação fora das tradicionais instituições comerciais ou governamentais, outra vantagem potencial. Por outro lado, em geral, o público não dispõe nem de tempo nem de método para converter as quantidades imensas de informação em conclusões razoáveis e de uso prático. Além disso, as empresas que geram a distribuição e a agregação de informação ajudam o público de forma dúbia: o fluxo de informação é orientado por algoritmos da empresa que, por sua vez, influenciam a apresentação, de modo a adequar-se a uma variedade de interesses financeiros, políticos e sociais, a par do gosto dos utilizadores, para que estes possam continuar fechados no silo de opiniões que os entretêm.
Reconheça-se, a bem da verdade, que as vozes sábias do passado – as vozes dos experientes e judiciosos editores de jornais, de programas de televisão e de rádio – não eram completamente imparciais, favorecendo visões específicas quanto ao funcionamento das sociedades. Todavia, na maior parte dos casos, essas visões concretas identificavam-se com perspectivas filosóficas ou sociopolíticas específicas, às quais cada um podia resistir ou apoiar. Hoje em dia, o grande público não tem essa oportunidade. Cada um de nós tem acesso directo ao mundo através do seu dispositivo portátil, e é encorajado a maximizar a sua autonomia. Não há grande incentivo para debater, e muito menos aceitar opiniões divergentes.
O novo mundo da comunicação é uma bênção para os cidadãos treinados a pensar de forma crítica e informada sobre a História. Mas qual a sorte dos cidadãos que foram seduzidos por um modelo de vida como diversão e comércio? Em grande medida, foram formados por um mundo em que a provocação emocional negativa é a regra e não a excepção, e onde as melhores soluções para um problema passam, em primeiro lugar, por interesses próprios e de curto prazo. Poderemos censurá-los?
A disponibilidade generalizada de comunicação abundante e quase instantânea de informação pública e pessoal, um óbvio benefício, reduz, paradoxalmente, o tempo necessário para a reflexão sobre essa mesma informação. A gestão do fluxo de conhecimento disponível obriga, frequentemente, a uma rápida classificação de factos como sendo bons ou maus, agradáveis ou não. Isto contribui, porventura, para um aumento de opiniões polarizadas quanto a acontecimentos sociais e políticos. A exaustão provocada pelo excesso de factos recomenda uma fuga para as crenças e as opiniões pré-definidas, em geral as do grupo a que o indivíduo pertence. Isto agrava-se pelo facto de tendermos naturalmente a resistir à mudança de opinião, pese embora a disponibilidade de provas em contrário, e por mais inteligentes e informados que sejamos.
Trabalhos realizados pelo nosso instituto [Instituto do Cérebro e da Criatividade na Universidade da Califórnia do Sul, EUA] mostram que isso é verdade em relação a crenças políticas, mas imagino que também se aplique a uma grande variedade de crenças, desde a religião e a justiça à estética. O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à activação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória. Por todo o mundo os eleitores descontentes recusam-se a comparecer nas urnas. Com tal clima, a disseminação de notícias falsas e de pós-verdades fica facilitada. O mundo distópico que George Orwell em tempos descreveu, tendo a União Soviética como modelo, corresponde agora a uma situação sociopolítica diferente. A velocidade das comunicações e a resultante aceleração do ritmo de vida são igualmente possíveis contribuidores para o declínio da civilidade, identificável na impaciência do discurso público e na crescente grosseria da vida urbana.
Uma questão separada, mas importante, que continua a ser menosprezada é a natureza viciante dos media electrónicos, desde as simples comunicações por email às redes sociais. O vício desvia tempo e atenção da experiência imediata do ambiente que nos rodeia para uma experiência mediada por uma grande variedade de dispositivos electrónicos. O vício aumenta o desenquadramento entre o volume de informação e o tempo necessário para a processar.
A quebra de privacidade que acompanha o uso universal da Web e das
redes sociais garante a monitorização de cada gesto e ideia humana.
Todos os tipos de vigilância, desde a necessária por motivos de
segurança pública até àquela que é intrusiva e mesmo abusiva, são agora
uma realidade, praticados, tanto pelo Governo como pelo sector privado,
com total impunidade. A vigilância faz com que a espionagem, até mesmo a
espionagem das superpotências, uma actividade estabelecida que nos
acompanha desde há milénios, pareça honrada e infantil. Até encontramos
vigilância à venda, por lucros elevados, pela mão de uma série de
empresas tecnológicas. O acesso ilimitado à informação privada está a
ser usado para criar escândalos embaraçosos, mesmo que o tema da
vigilância não seja de natureza criminosa. O resultado é o silêncio dos
candidatos políticos, para que eles e as suas campanhas políticas não
sejam destruídos por revelações pessoais. Isso tornou-se um factor
importante na governação pública. Em sectores vastos das regiões mais
tecnologicamente avançadas do mundo há escândalos de todas as dimensões
que influenciam resultados eleitorais e fortalecem a desconfiança do
público em relação às instituições políticas e às elites profissionais.
Sociedades que já se debatiam com grandes problemas de desigualdade de
riqueza e de deslocações humanas devido ao desemprego e às guerras
tornaram-se quase ingovernáveis. Os eleitorados desorientados recordam
com nostalgia passados há muito desaparecidos e miticamente melhores,
ou, como alternativa, revelam uma revolta profunda. A nostalgia, no
entanto, é deslocada, e a fúria, em geral, é mal dirigida. Tais reacções
reflectem uma compreensão limitada da miríade de factos apresentados
pelos vários órgãos de comunicação social, factos concebidos sobretudo
para entreter, promover determinados interesses sociais, políticos e
comerciais, e obter grandes recompensas financeiras com isso.
Nota-se uma tensão crescente entre o poder de um público vasto que parece mais bem informado do que nunca, mas que não dispõe do tempo ou dos instrumentos para julgar e interpretar a informação, e o poder das empresas e dos governos que controlam a informação e sabem tudo o que há para saber acerca desse mesmo público. Como sanar o conflito resultante? Há também riscos notáveis a considerar. A possibilidade de conflitos catastróficos que envolvam armas nucleares e biológicas representam riscos reais e possivelmente mais elevados agora do que quando essas armas eram controladas pelas potências da Guerra Fria; os riscos do terrorismo e o novo risco da guerra cibernética também são reais, bem como o risco das infecções resistentes a antibióticos. Podemos culpar a modernidade, a globalização, a desigualdade da riqueza, o desemprego, a educação a menos, o entretenimento a mais, a diversidade, e a rapidez e ubiquidade radicalmente paralisantes das comunicações digitais, mas atribuir culpas não reduz os riscos, de imediato, nem resolve o problema das sociedades ingovernáveis, sejam quais forem as causas.
Por António Damásio
PÚBLICO
Junto à margem do mar da Galileia, numa manhã de Inverno cheia de sol, a poucos passos da sinagoga de Cafarnaum onde Jesus de Nazaré falou aos seus seguidores, penso nos problemas longínquos do Império Romano mas sobretudo na crise actual da condição humana. É uma crise curiosa, pois embora as condições locais sejam distintas em cada ponto do mundo onde ocorre, as respostas que a definem são semelhantes, marcadas pela zanga, fúria e confronto violento, a par de apelos ao isolamento dos países e de uma preferência por governação autocrática.
Mas a crise é sobretudo decepcionante, pois não devia de todo estar a acontecer. Seria de esperar que pelo menos as sociedades mais avançadas tivessem ficado imunizadas pelos horrores da Segunda Guerra Mundial e pelas ameaças da Guerra Fria, e que tivessem encontrado maneiras de ultrapassar, de modo gradual e pacífico, quaisquer dos problemas que as culturas complexas necessariamente enfrentam. Pensando bem, deveríamos ter sido menos complacentes.
No entanto, para considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos, já para não dizer indiferentes ao drama dos restantes seres humanos que vivem na miséria. Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. Ao que parece, não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, “ser”. Parte das sociedades que celebram a ciência e a tecnologia modernas, e que mais lucram com elas, parece estar numa situação de bancarrota “espiritual”, tanto no sentido secular como religioso do termo. A julgar pela aceitação despreocupada das crises financeiras problemáticas – a bolha da Internet de 2000, os abusos hipotecários de 2007 e o colapso bancário de 2008 – parecem igualmente estar numa situação de bancarrota moral. Curiosamente, ou talvez não tanto, o nível de felicidade nas sociedades que mais beneficiaram com os espantosos progressos do nosso tempo mantém-se estável ou em declínio, caso possamos confiar nas respectivas avaliações.
Ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, o grande público das sociedades mais avançadas aceitou, com pouca ou nenhuma resistência, o tratamento cada vez mais deformado das notícias e das questões públicas concebidas para se enquadrarem no modelo de entretenimento da televisão e da rádio comerciais. As sociedades menos avançadas não têm demorado a imitar essa atitude. A conversão de quase todos os “media” de interesse público ao modelo lucrativo de negócios veio reduzir ainda mais a qualidade da informação. Embora uma sociedade viável deva preocupar-se com a forma como o Governo promove o bem-estar dos cidadãos, a noção de que se deve proceder a uma pausa diária de alguns minutos e fazer um esforço para se ficar a par das dificuldades e dos êxitos dos governos e dos cidadãos não só se tornou antiquada, como quase desapareceu. Quanto à noção de que devemos aprender algo sobre essas questões com seriedade e respeito, ela é, hoje em dia, um conceito estranho. A rádio e a televisão transformam cada questão governativa numa “história”, com a “forma” e o valor de entretenimento dessa história a contarem mais do que o seu conteúdo factual. Quando, em 1985, Neil Postman escreveu o seu livro Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business, ele fez um diagnóstico correcto, mas nem sonhava que sofreríamos tanto antes de morrer. O problema agravou-se com a redução de fundos para a educação pública e com o declínio previsível da preparação de cidadãos, e, no caso dos Estados Unidos, piorou com o repúdio, em 1987, da Fairness Doctrine, que desde 1949 requeria um tratamento equilibrado dos comentários políticos. O resultado, intensificado pelo declínio dos jornais impressos e pela ascensão e domínio quase absoluto por parte da comunicação digital e da televisão, é a carência profunda de conhecimentos pormenorizados e não-partidários dos assuntos públicos, a par do abandono gradual das práticas da reflexão ponderada e do discernimento sobre os factos. É preciso ter o cuidado de não exagerar a nostalgia por um tempo que nunca existiu por completo. Nem todo o público estaria seriamente informado, reflexivo e exigente. Nem todos os cidadãos tinham reverência pela verdade e pela nobreza de espírito, já para não falar de reverência pela vida. Não obstante, o presente colapso da consciência pública séria é problemático. As sociedades humanas encontram-se previsivelmente fragmentadas segundo uma variedade de medidas, como literacia, nível de habilitações, comportamento cívico, aspirações espirituais, liberdade de expressão, acesso à justiça, estatuto económico, saúde e segurança ambiental. Dadas as circunstâncias, torna-se mais difícil do que jamais foi encorajar o público a promover e a defender uma lista de valores, direitos e obrigações que não sejam negociáveis.
Dado o espantoso progresso dos novos media, o público tem a oportunidade de ficar a saber com mais pormenores do que nunca os factos por detrás das economias, o estado dos governos locais e globais, e o estado das sociedades em que vive, algo que, sem qualquer dúvida, se trata de uma vantagem que confere poder real; para além disso, a Internet fornece meios de deliberação fora das tradicionais instituições comerciais ou governamentais, outra vantagem potencial. Por outro lado, em geral, o público não dispõe nem de tempo nem de método para converter as quantidades imensas de informação em conclusões razoáveis e de uso prático. Além disso, as empresas que geram a distribuição e a agregação de informação ajudam o público de forma dúbia: o fluxo de informação é orientado por algoritmos da empresa que, por sua vez, influenciam a apresentação, de modo a adequar-se a uma variedade de interesses financeiros, políticos e sociais, a par do gosto dos utilizadores, para que estes possam continuar fechados no silo de opiniões que os entretêm.
Reconheça-se, a bem da verdade, que as vozes sábias do passado – as vozes dos experientes e judiciosos editores de jornais, de programas de televisão e de rádio – não eram completamente imparciais, favorecendo visões específicas quanto ao funcionamento das sociedades. Todavia, na maior parte dos casos, essas visões concretas identificavam-se com perspectivas filosóficas ou sociopolíticas específicas, às quais cada um podia resistir ou apoiar. Hoje em dia, o grande público não tem essa oportunidade. Cada um de nós tem acesso directo ao mundo através do seu dispositivo portátil, e é encorajado a maximizar a sua autonomia. Não há grande incentivo para debater, e muito menos aceitar opiniões divergentes.
O novo mundo da comunicação é uma bênção para os cidadãos treinados a pensar de forma crítica e informada sobre a História. Mas qual a sorte dos cidadãos que foram seduzidos por um modelo de vida como diversão e comércio? Em grande medida, foram formados por um mundo em que a provocação emocional negativa é a regra e não a excepção, e onde as melhores soluções para um problema passam, em primeiro lugar, por interesses próprios e de curto prazo. Poderemos censurá-los?
A disponibilidade generalizada de comunicação abundante e quase instantânea de informação pública e pessoal, um óbvio benefício, reduz, paradoxalmente, o tempo necessário para a reflexão sobre essa mesma informação. A gestão do fluxo de conhecimento disponível obriga, frequentemente, a uma rápida classificação de factos como sendo bons ou maus, agradáveis ou não. Isto contribui, porventura, para um aumento de opiniões polarizadas quanto a acontecimentos sociais e políticos. A exaustão provocada pelo excesso de factos recomenda uma fuga para as crenças e as opiniões pré-definidas, em geral as do grupo a que o indivíduo pertence. Isto agrava-se pelo facto de tendermos naturalmente a resistir à mudança de opinião, pese embora a disponibilidade de provas em contrário, e por mais inteligentes e informados que sejamos.
Trabalhos realizados pelo nosso instituto [Instituto do Cérebro e da Criatividade na Universidade da Califórnia do Sul, EUA] mostram que isso é verdade em relação a crenças políticas, mas imagino que também se aplique a uma grande variedade de crenças, desde a religião e a justiça à estética. O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à activação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória. Por todo o mundo os eleitores descontentes recusam-se a comparecer nas urnas. Com tal clima, a disseminação de notícias falsas e de pós-verdades fica facilitada. O mundo distópico que George Orwell em tempos descreveu, tendo a União Soviética como modelo, corresponde agora a uma situação sociopolítica diferente. A velocidade das comunicações e a resultante aceleração do ritmo de vida são igualmente possíveis contribuidores para o declínio da civilidade, identificável na impaciência do discurso público e na crescente grosseria da vida urbana.
Uma questão separada, mas importante, que continua a ser menosprezada é a natureza viciante dos media electrónicos, desde as simples comunicações por email às redes sociais. O vício desvia tempo e atenção da experiência imediata do ambiente que nos rodeia para uma experiência mediada por uma grande variedade de dispositivos electrónicos. O vício aumenta o desenquadramento entre o volume de informação e o tempo necessário para a processar.
Nota-se uma tensão crescente entre o poder de um público vasto que parece mais bem informado do que nunca, mas que não dispõe do tempo ou dos instrumentos para julgar e interpretar a informação, e o poder das empresas e dos governos que controlam a informação e sabem tudo o que há para saber acerca desse mesmo público. Como sanar o conflito resultante? Há também riscos notáveis a considerar. A possibilidade de conflitos catastróficos que envolvam armas nucleares e biológicas representam riscos reais e possivelmente mais elevados agora do que quando essas armas eram controladas pelas potências da Guerra Fria; os riscos do terrorismo e o novo risco da guerra cibernética também são reais, bem como o risco das infecções resistentes a antibióticos. Podemos culpar a modernidade, a globalização, a desigualdade da riqueza, o desemprego, a educação a menos, o entretenimento a mais, a diversidade, e a rapidez e ubiquidade radicalmente paralisantes das comunicações digitais, mas atribuir culpas não reduz os riscos, de imediato, nem resolve o problema das sociedades ingovernáveis, sejam quais forem as causas.
Por António Damásio
PÚBLICO
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