Como sempre na história, a família está em crise de mudança e
transformação. Mas o mais interessante é a multiplicação de modelos de
família, com implicações morais, religiosas, culturais, sociais e
jurídicas.
Durante a campanha eleitoral, um termo foi frequentemente utilizado, sempre em bom-tom e recolhendo os favores dos candidatos: família! Toda a gente se revê nela e reclama uma “política”. O problema curioso é que, conforme as pessoas e os partidos, se fala de coisas diferentes e de conceitos diversos. Dado que o assunto é delicado, todos preferem não qualificar. E assim se deixa correr o conceito mais vulgar, o de família nuclear clássica, cristã, legal, com coabitação de pais e filhos, por vezes uma terceira geração.
A popularidade do divórcio, a partir dos anos setenta, assim como o
desenvolvimento de todas as formas de união, registadas ou não, com e
sem coabitação, criaram situações que nos obrigam a ter cuidado quando
falamos de famílias. Sobretudo na política, pois isso implica logo
direitos e deveres, estatutos e impostos.
Um retrato muito rápido dá o seguinte. A população portuguesa está a diminuir. O crescimento natural cessou, depois estagnou e agora está em recuo. Os óbitos são mais do que os nascimentos. O saldo migratório é também negativo, isto é, mais emigrantes portugueses do que imigrantes estrangeiros. Vivemos, na década presente, um período complexo com os dois saldos negativos, o natural e o migratório.
A sociedade portuguesa envelhece. Por cada 100 jovens, já há 150 idosos! Em si, o envelhecimento é boa notícia, dado que significa saúde, água potável e melhor alimentação. Ao contrário do que se diz, envelhecer não é um problema, problema é a baixa natalidade! Ou morrer cedo! A má notícia é que o envelhecimento foi rápido de mais e Portugal tem uma das populações mais idosas do mundo. Ora, a sociedade parece não estar preparada para esse envelhecimento rápido: a idade de reforma, as pensões, os serviços de apoio, o envelhecimento activo, o acolhimento hospitalar e muitas outras realidades não estão preparadas.
Nesta situação demográfica, as famílias evoluíram. A dimensão diminuiu: 2,5 pessoas por família reduzida a duas gerações. A média do número de filhos é de menos de um por família! Aumentaram as famílias de uma só pessoa (perto de 1 milhão). Os casamentos católicos são hoje a minoria, foram superados pelos casamentos civis. E as uniões de facto ultrapassaram os casamentos. Os divórcios explodiram: quase 7 por cada 10 casamentos. Os filhos dentro do casamento foram superados pelos fora do casamento. Estes são 60% do total, dos quais um terço de mãe sozinha. A fecundidade fica-se por pouco mais de um filho por mulher em idade fértil, abaixo do patamar mínimo para que uma população se reproduza. Das 87 000 crianças nascidas num ano, apenas 37 000 nasceram de pai e mãe casados.
Em Portugal, haverá pouco mais de 4 milhões de famílias. Um milhão tem uma só pessoa. Um milhão de casais não tem filhos. Um milhão e meio são casais com filhos. E 500 000 são famílias monoparentais, isto é, quase sempre uma mãe com filhos. A dimensão média de uma família é de 2,5 pessoas. Com 6 pessoas ou mais, apenas existem 2%.
Por ano, efectuam-se cerca de 35 000 casamentos, dos quais quase mil entre pessoas do mesmo sexo. De todos os casamentos, apenas 11 000 são católicos. Mais de dois terços dos casamentos efectuados são apenas civis. Um quarto do total é de segundos casamentos. Cerca de um milhão de pessoas vive em “união de facto”, com ou sem coabitação. Ao mesmo tempo, realizam-se por ano 23 000 divórcios, o que faz com que haja 70 divórcios por 100 casamentos. Deste total, mais de metade é de pessoas que se tinham previamente casado pela Igreja.
Convém sublinhar vários factos. A mulher emancipa-se. O pai e a mãe estão ambos activos com emprego e em geral fora de casa. A escolaridade universal de 12 anos retira as crianças e os adolescentes de casa e do trabalho. Os pais têm cada vez menos interesse e tempo para a educação dos filhos, deixando às escolas esse papel de socialização. As famílias abandonaram as actividades agrícolas e industriais de proximidade e de comunidade, dedicam-se aos serviços, quase por definição dispersos. As famílias têm como concorrentes fortíssimos dispositivos: a escola, os professores, a televisão (cada vez menos), os computadores (cada vez mais), as máquinas de comunicação, as redes sociais e os grupos informais de jovens.
Muitas famílias refizeram-se de acordo com as migrações. Chegaram 150 000 famílias de origem estrangeira. Desenvolveu-se o pluralismo étnico, religioso e de costumes. A sociedade portuguesa ficou plural, a miscigenação desenvolveu-se pouco, mas a coexistência e a variedade sim. Dentro das famílias, as estruturas de poder e comportamento alteraram-se profundamente e, para o melhor e o pior, a “cultura jovem” condiciona o comportamento de toda a família.
As chamadas “novas famílias” abrangem realidades muito diferentes.
Com e sem casamento. Com e sem filhos de um, dois ou mais casamentos.
Uniões de facto com e sem coabitação. Monoparentais. Segundos e
terceiros casamentos. Filhos de pais e mães diferentes. Sem coabitação
necessária. Comunidades de residência com ou sem família. Do mesmo
género masculino ou feminino, com ou sem casamento. Famílias de escolha e
género de escolha. De várias religiões. Com e sem vínculo religioso.
Famílias que se formam com novas formas e regras: pessoas do mesmo
género, adopção como regra e várias formas de fecundação. Famílias de
escolha e famílias sem relações de consanguinidade.
Toda esta variedade gera conceitos diversificados de chefe de família, de poder paternal, de cabeça de casal, de autoridade sobre os filhos, de papel na religião e na educação e de lugar dos anciãos. Também surgem conceitos diversos de ordem moral e jurídica, tais como os poderes de representar, de assumir a responsabilidade civil, de legar, de definir as profissões e de contratar os casamentos dos filhos. Sem falar nos hábitos e nos direitos de monogamia e poligamia.
Como sempre na história, a família está em crise de mudança e transformação. Mas o mais interessante é a multiplicação de modelos de família, com implicações morais, religiosas, culturais, sociais e jurídicas. A variedade e o pluralismo podem ser sinais de progresso. Mas até onde pode ir a diversificação? Até à coexistência de várias religiões? Parece que sim. Vários costumes? Não há muitas dúvidas. Várias morais? Começa a ser complexo. Várias leis ou vários ordenamentos jurídicos? Aí já parece difícil. E, creio, impossível.
Por António Barreto
PÚBLICO
Durante a campanha eleitoral, um termo foi frequentemente utilizado, sempre em bom-tom e recolhendo os favores dos candidatos: família! Toda a gente se revê nela e reclama uma “política”. O problema curioso é que, conforme as pessoas e os partidos, se fala de coisas diferentes e de conceitos diversos. Dado que o assunto é delicado, todos preferem não qualificar. E assim se deixa correr o conceito mais vulgar, o de família nuclear clássica, cristã, legal, com coabitação de pais e filhos, por vezes uma terceira geração.
Um retrato muito rápido dá o seguinte. A população portuguesa está a diminuir. O crescimento natural cessou, depois estagnou e agora está em recuo. Os óbitos são mais do que os nascimentos. O saldo migratório é também negativo, isto é, mais emigrantes portugueses do que imigrantes estrangeiros. Vivemos, na década presente, um período complexo com os dois saldos negativos, o natural e o migratório.
A sociedade portuguesa envelhece. Por cada 100 jovens, já há 150 idosos! Em si, o envelhecimento é boa notícia, dado que significa saúde, água potável e melhor alimentação. Ao contrário do que se diz, envelhecer não é um problema, problema é a baixa natalidade! Ou morrer cedo! A má notícia é que o envelhecimento foi rápido de mais e Portugal tem uma das populações mais idosas do mundo. Ora, a sociedade parece não estar preparada para esse envelhecimento rápido: a idade de reforma, as pensões, os serviços de apoio, o envelhecimento activo, o acolhimento hospitalar e muitas outras realidades não estão preparadas.
Nesta situação demográfica, as famílias evoluíram. A dimensão diminuiu: 2,5 pessoas por família reduzida a duas gerações. A média do número de filhos é de menos de um por família! Aumentaram as famílias de uma só pessoa (perto de 1 milhão). Os casamentos católicos são hoje a minoria, foram superados pelos casamentos civis. E as uniões de facto ultrapassaram os casamentos. Os divórcios explodiram: quase 7 por cada 10 casamentos. Os filhos dentro do casamento foram superados pelos fora do casamento. Estes são 60% do total, dos quais um terço de mãe sozinha. A fecundidade fica-se por pouco mais de um filho por mulher em idade fértil, abaixo do patamar mínimo para que uma população se reproduza. Das 87 000 crianças nascidas num ano, apenas 37 000 nasceram de pai e mãe casados.
Em Portugal, haverá pouco mais de 4 milhões de famílias. Um milhão tem uma só pessoa. Um milhão de casais não tem filhos. Um milhão e meio são casais com filhos. E 500 000 são famílias monoparentais, isto é, quase sempre uma mãe com filhos. A dimensão média de uma família é de 2,5 pessoas. Com 6 pessoas ou mais, apenas existem 2%.
Por ano, efectuam-se cerca de 35 000 casamentos, dos quais quase mil entre pessoas do mesmo sexo. De todos os casamentos, apenas 11 000 são católicos. Mais de dois terços dos casamentos efectuados são apenas civis. Um quarto do total é de segundos casamentos. Cerca de um milhão de pessoas vive em “união de facto”, com ou sem coabitação. Ao mesmo tempo, realizam-se por ano 23 000 divórcios, o que faz com que haja 70 divórcios por 100 casamentos. Deste total, mais de metade é de pessoas que se tinham previamente casado pela Igreja.
Convém sublinhar vários factos. A mulher emancipa-se. O pai e a mãe estão ambos activos com emprego e em geral fora de casa. A escolaridade universal de 12 anos retira as crianças e os adolescentes de casa e do trabalho. Os pais têm cada vez menos interesse e tempo para a educação dos filhos, deixando às escolas esse papel de socialização. As famílias abandonaram as actividades agrícolas e industriais de proximidade e de comunidade, dedicam-se aos serviços, quase por definição dispersos. As famílias têm como concorrentes fortíssimos dispositivos: a escola, os professores, a televisão (cada vez menos), os computadores (cada vez mais), as máquinas de comunicação, as redes sociais e os grupos informais de jovens.
Muitas famílias refizeram-se de acordo com as migrações. Chegaram 150 000 famílias de origem estrangeira. Desenvolveu-se o pluralismo étnico, religioso e de costumes. A sociedade portuguesa ficou plural, a miscigenação desenvolveu-se pouco, mas a coexistência e a variedade sim. Dentro das famílias, as estruturas de poder e comportamento alteraram-se profundamente e, para o melhor e o pior, a “cultura jovem” condiciona o comportamento de toda a família.
Toda esta variedade gera conceitos diversificados de chefe de família, de poder paternal, de cabeça de casal, de autoridade sobre os filhos, de papel na religião e na educação e de lugar dos anciãos. Também surgem conceitos diversos de ordem moral e jurídica, tais como os poderes de representar, de assumir a responsabilidade civil, de legar, de definir as profissões e de contratar os casamentos dos filhos. Sem falar nos hábitos e nos direitos de monogamia e poligamia.
Como sempre na história, a família está em crise de mudança e transformação. Mas o mais interessante é a multiplicação de modelos de família, com implicações morais, religiosas, culturais, sociais e jurídicas. A variedade e o pluralismo podem ser sinais de progresso. Mas até onde pode ir a diversificação? Até à coexistência de várias religiões? Parece que sim. Vários costumes? Não há muitas dúvidas. Várias morais? Começa a ser complexo. Várias leis ou vários ordenamentos jurídicos? Aí já parece difícil. E, creio, impossível.
Por António Barreto
PÚBLICO
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