Porque é que as crianças jantam a olhar para o tablet?

No dia-a-dia abrasivo e muito machista da sociedade portuguesa, o jantar de família, calmo, colectivo e conversador, é uma longínqua quimera. O tablet ocupa o espaço vazio, é a dama de companhia.

A censura sobre os pais é enorme. Julgar os pais pelos alegados fracassos na educação dos filhos é um desporto muito português. Toda a gente julga e dá palpites tremendistas, mesmo aqueles que não têm filhos aqui e agora. Os solteirões sem filhos julgam quem ousou ter filhos; lançam esta crítica a partir de um conceito abstrato de "criança" que varia de cabeça para cabeça. Aqueles que tiveram filhos há trinta ou quarenta anos também julgam. Estes, os avós, são muitas vezes os piores, porque não percebem que ser pai em 2020 é mais difícil do que em 1980.
Neste festim justiceiro, as pessoas assumem que só existe vontade ou ausência de vontade. Isto é, se uma criança passa o jantar a ver bonecos no tablet ali no restaurante ou hotel, as pessoas à volta assumem que isso só pode ser o resultado de duas coisas: ou é a vontade expressa dos pais, ou é o resultado da inércia dos pais. Mas já pensaram que no mundo existem forças exteriores ao livre arbítrio? Já pensaram que existem forças estruturais que nos esmagam? Neste caso, a força estrutural é a seguinte: uma percentagem altíssima dos miúdos está habituado a comer com tablet, porque a mãe (e é quase sempre a mãe) está sozinha com eles à hora do jantar. Está sozinha sem marido que não chega, sem mãe ou sogra que estão longe ou não querem ajudar, sem tios ou tias, sem irmãos que também moram longe. São poucos os pais que têm ajuda de familiares àquela hora. Eu tive essa sorte e, também por causa disso, as minhas filhas comem sem tablet.
A ajuda familiar que eu tive é rara, quase arqueológica. Infelizmente, a maioria está sozinha à hora do jantar. Ela, a mãe portuguesa, está sozinha. E está sozinha porque o modo de vida da sociedade portuguesa é uma máquina de destruição de casamentos e famílias. Não é por acaso que temos a segunda taxa de divórcio mais alta da Europa. O nosso horário de trabalho tão peculiar e o machismo intrínseco dos portugueses tornam a vida familiar após a escola num inferno solitário para a mãe, que, sem ajuda de familiares ou criadas, tem de dar banhos, lavar roupa, fazer jantar, dar o jantar, etc., etc. Ou está sozinha porque ele não chega, ou está sozinha porque já está divorciada.
Eis portanto o resultado prático deste fracasso colectivo: ela, a mãe, deixa o garoto a comer sozinho com o tablet para conseguir fazer outra coisa qualquer; cozinhar o almoço para a marmita do dia seguinte, por exemplo, ou passar a ferro, ou ajudar nos TPC do outro filho, ou ligar para o marido que nunca mais chega. Se dependesse da sua vontade, o filho não jantava com o tablet, mas não é uma questão de vontade. O tablet é o mal menor neste contexto de solidão. No dia-a-dia abrasivo e muito machista da sociedade portuguesa, o jantar de família, calmo, colectivo e conversador, é uma longínqua quimera. O tablet ocupa o espaço vazio, é a dama de companhia. Percebem agora? Podem tentar julgar menos e tentar perceber mais?

Por Henrique Raposo
RENASCENÇA

Comentários