A alegria do diálogo com os não crentes: Como a Igreja deve comunicar

Numa conversa verdadeiramente profunda, a minha identidade não é absolutizada. Abre-se à expansão e também ao desafio da parte do meu interlocutor. Toda a amizade revela-me novas dimensões da minha identidade que ainda não experimentei.
Eu vivo em Oxford, em comunidade com jovens frades. Cada ano chega um novo grupo. Devo descobrir quem são, mas também quem sou eu com eles. Com cada nova chegada de jovens, devo abrir-me ao seu modo de ser, e portanto ampliar o meu modo de sentir que sou eu próprio com eles.
Quando era jovem frade, passei um ano em Paris. Gostava muito de ir ao café, ler o “Le Monde”, fumar “Gauloises” e beber um belo copo de cerveja. Tornei-me um pouco francês. Se tivesse permanecido aqui em Itália durante algum tempo, tornar-me-ia seguramente um pouco italiano. S. Tomás de Aquino gostava da expressão “anima est quodammodo omnia”: a alma é, de certa maneira, todas as coisas. Cada nova relação alarga o meu ser, e liberta-me de preconceitos e identidades demasiado pequenos.
No seu livro sobre Dostoiévsky, Rowan Williams, o ex-arcebispo de Canterbury, cita Michail Bachtin: «O diálogo não é o meio para revelar, para levar à luz o carácter já belo e pronto de uma pessoa; não, no diálogo uma pessoa não se mostra aprneas para o exterior, mas torna-se pela primeira vez aquilo que é. E repetimos: não só para os outros, mas também para si próprio». Toda a verdadeira conversação convida-me a ser algo de inédito. Dialogar implica estar abertos a uma nova identidade. Como cristãos, cada identidade que construímos é alguma coisa de parcial e provisório. S. João disse: «Caríssimos, a partir de agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou aquilo que seremos. Sabemos que quando isso se manifestar, seremos semelhantes a Ele porque o veremos como Ele é» (1 João 3,2). Aquilo que seremos ainda não foi revelado! A minha viagem rumo ao Deus desconhecido, que está para além de todas as palavras, é também a viagem rumo ao meu eu desconhecido. Eu, por isso, transporto no diálogo a identidade que desenvolvi até agora: conservador ou liberal, inglês ou italiano, homossexual ou heterossexual, até dominicano ou jesuíta. E espero ser respeitado enquanto tal. Mas se me relaciono com o outro, todas estas identidades são apenas esboços provisórios. Quem eu sou juntamente contigo é uma descoberta ainda por fazer! Assim, quando a Igreja dialoga com a modernidade laica, a Igreja está a descobrir o que ela própria é neste mundo novo. A Igreja tem uma identidade aberta que é descoberta de novo em cada geração.


John Lennon escreveu no texto da sua canção “Beautiful boy”: «A vida é aquilo que te acontece enquanto estás ocupado a fazer outros planos». Por isso não está longe de (...) S. John Henry Newman quando nos adverte: «Não tenhas medo que a tua vida tenha um fim, mas teme antes que nunca tenha um início»



Quando a Igreja entrou no Império Romano, foi transformada. Quando os europeus atravessaram o Atlântico e encontraram os nativos das Américas, a Igreja foi mudada. E assim também hoje. Se eu fujo da modernidade laica e secularizada, escondo-me também da pessoa que poderei tornar-me. Como podemos, então, enfrentar esta excitante aventura? Antes de tudo, de que coisa devemos falar? Eu sugiro que a Igreja e a modernidade laica dialoguem sobre aquilo que nos interessa a todos, isto é: o que significa estar vivos. Thomas Merton, o monge cisterciense, proferiu a sua última lição em Banguecoque, pouco antes de morrer fulminado no duche. Depois da lição falou com uma religiosa que lhe perguntou por que é que não procurou converter os seus ouvintes à fé. As suas últimas palavras que conhecemos foram: «Penso que hoje é mais importante para nós deixar que Deus viva em nós, de tal maneira que os outros o sintam e cheguem a acreditar em Deus porque o sentem viver em nós». Deus disse a Israel: «Propus-te a vida e a morte (…), escolhe a vida» (Deuteronómio 30,19). Tudo aquilo que nós acreditamos é um Sim à vida. Benedict Green era um monge anglicano que tinha a doença de Parkinson desde jovem. No fim tornou-se para ele impossível falar de maneira compreensível. Enviou, então, uma carta a todos os seus amigos, pedindo-lhes para rezarem por ele, mas que deixassem de o procurar. Já não seria capaz de dizer nada. Conclui a missiva com uma citação de Dag Hammarskjöld, o segundo secretário-geral das Nações Unidas: «Por tudo aquilo que aconteceu: obrigado. Por tudo aquilo que será: Sim». Isto é, obrigado pela vida que recebi, sim à vida que Deus dará.
Por isso, quando refletimos sobre o que significa dizer Sim à vida, a esperança da Igreja encontra a angústia dominante do nosso tempo, ou seja, que a vida está a acontecer em algum lugar onde eu não estou. John Lennon escreveu no texto da sua canção “Beautiful boy”: «A vida é aquilo que te acontece enquanto estás ocupado a fazer outros planos». Por isso não está longe de (...) S. John Henry Newman quando nos adverte: «Não tenhas medo que a tua vida tenha um fim, mas teme antes que nunca tenha um início». Os jovens buscam nos seus telemóveis para saber onde acontecem as coisas: é aí que procuram as experiências de vida autêntica. Jesus disse: «Eu vim para que tenham a vida, e a tenham em plenitude» (João 10,10). E Santo Ireneu, no segundo século, escreveu “Gloria Dei, homo vivens”: um homem plenamente vivo é a verdadeira glória de Deus.


As nossas palavras devem ser concretas, com os pés na terra, e inspiradas pela vida vivida. De outra maneira, não serão palavras de vida. Permanecerão abstrações. Nós acreditamos num Verbo que se fez carne, e assim devem fazer as nossas palavras



Os nossos contemporâneos não crentes podem talvez olhar para nós e dizer: «Caramba, estes cristãos estão realmente vivos?». Se a resposta é não, porque deveriam ter interesse em falar connosco? Este é o tema do meu próximo livro, que será publicado em inglês daqui a poucos dias, “Vivos em Deus. Uma imaginação cristã”. Nós, cristãos, só conseguiremos ter uma boa conversação com os não crentes se reconhecermos que também eles entendem alguma coisa do que significa estar vivos. Algo que vale a pena para nós aprender. Também eles falam com autoridade.
Uma boa conversa requer que não só se reconheça a identidade da outra pessoa, mas também a sua própria autoridade. Teremos uma boa conversa só se reconhecermos que os leigos, sejam crentes ou não, compreendem o quanto é complexa, difícil e maravilhosa a vida hoje. Muitas vezes os sacerdotes, durante as pregações, dizem banalidades tais sobre o amor e a vida conjugal, que irritam profundamente quem os escuta. É duro ser casado, ter filhos, sobreviver se não se tem uma casa. Um dominicano do Sri Lanka, Cornelius Ernst, escreveu no seu diário pouco antes de morrer: «Não posso admitir que Deus possa ser adorado em espírito e verdade só por um indivíduo dobrado sobre si próprio e afastado de tudo aquilo que pode perturbar e estimular o seu coração. Tem de ser possível encontrar e adorar Deus na complexidade da experiência humana». A Igreja pode falar com autoridade das fadigas da vida humana só se estiver aberta à autoridade dos leigos, crentes ou não, que sabem quanto é difícil. Não podemos falar de moral sexual se não escutarmos aqueles que têm uma vida sexual. Eu leio romances, vejo filmes, escuto música pop e falo com muitos amigos para procurar aprender tudo aquilo que posso sobre a riqueza e a complexidade da vida humana. O papa Francisco aprendeu estas coisas nas periferias de Buenos Aires. As nossas palavras devem ser concretas, com os pés na terra, e inspiradas pela vida vivida. De outra maneira, não serão palavras de vida. Permanecerão abstrações. Nós acreditamos num Verbo que se fez carne, e assim devem fazer as nossas palavras.


Timothy Radcliffe, op
In L’Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: jarino47/Bigstock.com
Publicado em 15.10.2019


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