Há seis anos, Jorge
Mario Bergoglio chegou à varanda e disse: «Irmãos e irmãs, boa noite!», e
a seguir nada ficou como antes.
A normalidade tinha tocado a terra e,
sobretudo, tinha tocado os corações e desatou-os. Desde logo as pessoas
perceberam que um outro modo, mais humano, de viver, inclusive de viver o
poder, era possível.
Sem os dois verbos já mencionados, tocar
e desatar, é difícil compreender este pontificado. Há ainda outro verbo
que pode servir: cuidar. Cuidar não só como curar, mas antes de mais
como assumir para si o cuidar.
Releiamos aquelas primeiras palavras,
são palavras gentis de saudação, dirigidas a todos e a cada um, não
«queridos irmãos», mas irmãos e irmãs, todos e cada um, com o cuidado de
distinguir e sublinhar a diferença sexual. Francisco e a sua atenção ao
mundo e ao modo das mulheres, um modo extremamente cristão porque «a
Igreja é mãe», como reafirmou numa breve intervenção não programada
durante a cimeira sobre os abusos sexuais, por ele desejada e organizada
no fim de fevereiro deste 2019, já tão rico de acontecimentos
extraordinários (pense-se no encontro em Abu Dhabi com o imã Al Tayeb).
Seis anos repletos de grandes
acontecimentos, grandiosos [em Portugal está presente a peregrinação a
Fátima, em maio de 2017, por ocasião dos 100 anos das aparições], mas é
nas pequenas coisas que, muitas vezes de maneira oculta, resplandece a
grandeza, como disse Francisco, ao voltar precisamente de Abu Dhabi: não
há histórias pequenas, histórias privadas de dignidade e beleza, porque
cada dia é decisivo.
Concentremo-nos naquele momento do dia
13 de março de 2013, quando o novo papa, simplesmente, saudou. O gesto
mais pequeno, quotidiano e modesto, que, no entanto, revela profundidade
abissal. Saudar quer dizer precisamente mostrar cuidado, atenção e amor
pelo outro. Literalmente quer dizer desejar a salvação («salve!»), e,
portanto, recordar a prioridade da vida, e desejar ao outro a coisa mais
importante, demonstrando a alegria do encontro, a felicidade por o
outro existir, o desejo de deixar o outro viver, deixá-lo ir sem o
querer possuir. Tudo isto em cada simples expressão de saudação. Estamos
aqui, nesta terra, irmãos e irmãs, e precisamos de salvação, e é
precisamente este o mistério central do catolicismo, o facto de Deus Pai
se ter incarnado «por nós homens, e pela nossa salvação».
Infelizmente, já há muito se perdeu o
significado da palavra, e a antiga “salus”, de “salvação” deslizou para a
mera “saúde”. A religião de hoje é a vida saudável, da salvação já não
se sente necessidade. A isso fez o papa, implicitamente, um rápido aceno
na intensa homilia de Quarta-feira de Cinzas: «Cada um de nós pode
perguntar-se: no caminho da vida, procuro a rota? Ou contento-me em
viver dia a dia, pensando só em estar bem, em resolver alguns problemas e
em divertir-me um pouco? Qual é a rota? Talvez a procura da saúde, que
muitos dizem hoje que vem antes de tudo, mas que mais cedo ou mais tarde
passará? Talvez os bens e o bem-estar? Mas não estamos no mundo para
isso».
A saúde «está primeiro», diz-se
mecanicamente, e em vez disso o papa veio tirar os “mecanismos”, veio
desatar laços, na maior parte dos casos mentais e ideológicos, que nos
impedem de caminhar com mais naturalidade e até de cabeça erguida, como
homens.
Veio dizer qual é verdadeiramente a
“primeira coisa” (que para os cristãos é uma Pessoa). E assim,
tocando-nos, desatando-nos e cuidando de nós, está a reabilitar-nos para
o andamento normal do caminhar humano. Um grande exercício de
reabilitação foram estes seis anos de Francisco, com todo o esforço e as
resistências próprias de todo o caminho de reabilitação. Quantas vezes,
durante as catequeses do papa, como se fosse um exercício, nos fez
repetir uma frase, um gesto, todos juntos, de maneira a fixar na nossa
mente e na prática aquele “método” pacientemente oferecido por ele e
pela sua sabedoria, proposto a todos por ele, ancião mas vigoroso
“fisioterapeuta”?
Se se olha para o papa, pode entrever-se o modelo de um médico, de alguém que assume o cuidado das almas e dos corpos das ovelhas que lhe foram confiadas, misturando-se com elas até ficar com o seu cheiro.
Francisco parte e anda por todo o mundo armado apenas com aquela malinha que leva consigo, e parece precisamente um médico que vai a tua casa, ao teu encontro, para te dar o cuidado de que precisas. E não é um médico qualquer, nem um médico especialista numa só área da medicina, não. Francisco é um médico de família. Ele vai ao teu encontro e sabe curar-te porque te conhece, conhece a tua história, viu-te nascer e conhece a rede de relações que fizeram de ti aqui que és, porque é um homem de Igreja, essa Igreja que segundo a expressão do seu amado Montini [papa Paulo VI] é «perita em humanidade». E tu abres-te a ele, porque é o “teu” médico, o teu médico de família, é alguém de casa. Confias nele, ele sabe onde ver, que parte do corpo tocar para perceber em poucos minutos qual é o mal que te aflige, e dar o conselho curativo, sugerindo-te o antídoto, porque não se trata de um médico “mercenário”, mas de um corajoso, consciencioso, capaz de prescrever curas amargas e muito exigentes, se forem adequadas (e quantos protestos contra este médico bom!).
Alem dos três verbos, há um adjetivo que marca o sentido deste pontificado: urgente. Francisco não se detém, corre continuamente para a mesa de cabeceira de um mundo gravemente doente. E não tem preferência pelos diferentes doentes, sabe que todo o mundo está em sofrimento, e que ele é a cabeça da Igreja, este grande hospital de campanha que não pode permitir-se dias de férias. A cura tem de ser pronta, rápida, tem de intervir antes que a situação piore. O seu procedimento é agora conhecido: mal chega, sente o pulso do doente. Se a doença atacou o coração, ele aperta o pulso, aparentemente tão distante, mas é assim que se faz para controlar a circulação, e portanto o coração: não se vai ao centro, mas à periferia. Explicou-nos assim que a periferia é o centro, que é dali que é preciso partir. Depois das análises, vem o diagnóstico: esclerosamento, as vias de circulação estão entupidas, é uma doença maligna, o Maligno, que tem de ser combatido e debelado. E após o diagnóstico, a cura.
Neste cenário dramático, urge a oração e, sobretudo, um medicamento invencível: a misericórdia. É a palavra que estes seis anos de pontificado nos legam, uma palavra grande, incandescente, que ainda temos de aprender a manejar, mas que sob o cuidado de Francisco, médico do mundo, podemos assimilar e, sobretudo, restituir para uma circulação mais sã, natural, humana.
[Andrea Monda | In L'Osservatore Romano]
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