Começou agora a
quaresma. Para os cristãos é uma oportunidade que é preciso agarrar com
decisão. Mas, mesmo para os não cristãos, pode não ser indiferente o
significado deste itinerário ascético que antecede e prepara a Páscoa.
Claro que é ainda necessário sacudir os vestígios dos lugares comuns que
reduziram a quaresma ao simbólico interdito da carne, na ementa das
sextas-feiras, e criaram todo um anedotário em que a abstenção do bife
era substituída, pelas boas almas piedosas, por um repasto de marisco,
pois o importante era cumprir formalmente a regra. A quaresma, porém, é
bem mais interessante do que essa triste caricatura. E é-o, porque nos
recorda, contra os fatalismos paralisantes e contra a nossa própria
acomodação, que é sempre possível fazer alguma coisa. Esta: colocar-se
cada um em revisão crítica, metendo em causa os próprios estilos de
vida. O programa quaresmal é, assim, pessoal e prático. Trata-se de agir
sobre si mesmo e contribuir desse modo para o emergir de uma
consciência comunitária mais atenta.
As ‘ferramentas’ que a tradição cristã
propõe são de natureza ascética e servem em outras religiões e até em
contexto laico para alcançar o mesmo objetivo: uma necessária conversão
de vida a partir do esforço de cada um. Essas ‘ferramentas’ são: o
jejum, a oração e a esmola. Há que aprender ou reaprender a utilizá-las
em chave existencial.
O jejum, por exemplo, começa por ser uma
privação alimentar voluntária, mas que nos põe a refletir, e de forma
não só mental, sobre aquilo de que nos nutrimos nós e como o fazemos. Na
mensagem quaresmal para este ano, o Papa Francisco explica que o jejum
permite-nos “passar da tentação de ‘devorar’ tudo para satisfazer a
nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor”. O jejum pode
tornar-se assim um élanpara modificar e reorientar o nosso modo de
habitar o mundo. E é uma questão de comida, claro. Porém, não se esgota
aí. O jejum introduz uma ponderação crítica sobre tudo o que nos serve
de alimento: palavras, imagens, hábitos, consumos, prazeres.
O programa quaresmal é pessoal e prático. Trata-se de agir sobre si mesmo e contribuir desse modo para o emergir de uma consciência comunitária mais atenta
A oração, por sua vez, é um antídoto
contra a autossuficiência e contra o endeusamento das nossas
possibilidades ou necessidades, abrindo em nós um espaço ao que é maior
do que nós. Precisamos romper com o circuitado movimento que nos faz
rodopiar à volta de nós mesmos ou então dispersos em pura exterioridade,
consumidos pelo puro imediatismo. A oração abre-nos a um para lá,
introduz-nos noutro ritmo, faz-nos respirar de outra forma, ajuda-nos a
levantar os olhos que trazemos fixos sobre os sapatos e erguê-los até às
estrelas.
Por último, a esmola serve para nos
recordar que os bens são meios ao serviço de uma vida eticamente
qualificada e não uma finalidade da nossa existência. Justamente, o Papa
recorda que precisamos de praticar a partilha dos bens “para sair da
insensatez de viver a acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de
assegurarmos um futuro que não nos pertence”.
O tema proposto por Francisco para a
quaresma de 2019 recupera um passo da ‘Carta de São Paulo aos romanos’:
“A criação encontra-se em expectativa ansiosa, aguardando a revelação
dos filhos de Deus” (Rm 8, 19). E o diagnóstico de que parte é, em si
mesmo, um chamamento a uma ecologia integral, quando nos lembra que
“tantas vezes adotamos comportamentos destruidores do próximo e das
outras criaturas — mas também de nós próprios —, considerando, de forma
mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apraz”. De
facto, cada um pode fazer alguma coisa para que o jardim comum não se
torne um deserto.
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