Num dos escritos de
Jean-Luc Nancy, aquele filósofo recorda-nos uma coisa em que não
pensamos: como a sonoridade tem, afinal, um papel decisivo não apenas na
comunicação, mas também na semântica das palavras.
É uma verdade: antes
de serem sentido, e para chegarem a ser sentido, todas as palavras
ditas tiveram de ser som. Um exemplo que Nancy avança é o do próprio
termo francês para palavra, mot. Mot deriva do latino muttum, que
significa grunhido, e que está também na origem de “murmúrio”, esse
efeito sonoro que assinala a passagem de um sopro entre os lábios. No
termo mot podemos, por isso, escutar aquele mesmo “mu” que surge
duplicado no termo murmúrio, como que a dizer-nos que a nossa linguagem
oral é indissociável da intimidade extrema de uma voz e que tudo o que
temos para escutar está nesse sopro, nesse jogar fragilíssimo de vida.
Mesmo na etimologia do nosso termo português “palavra” podemos anotar
esse vestígio. “Palavra” provém do termo latino parabola, contudo a sua
sonoridade não está distante de labrum/labra, que significa lábios. Em
todas as palavras que proferimos a marca dessa primordial passagem
continua a persistir, portanto.
Sendo assim, o que é escutar? O que é
gerir a torrente de palavras que captamos a cada momento? Certamente
passa por ativar os códigos de decifração de sentido. Mas não devemos
esquecer que as palavras não se descobrem apenas no que designamos por
sentido. Não as compreenderemos verdadeiramente se formos indiferentes
ao seu som, se não aproximarmos o ouvido desse estremecimento que cada
ser humano gera movendo os lábios, desse infinitesimal sopro que emite o
tremido (fortuito, vacilante, vibrante) e as suas modulações, pois
dessa maneira as palavras narram a resiliência, o sofrimento, a
reparação, a alegria e o segredo daqueles que as pronunciam.
Nancy defende que a nossa razão de
falantes é, no fundo, dar a razão do mundo. Mas — não nos iludamos — é
no precário da voz que a razão que damos do mundo ressoa; é na fricção
que a voz desenvolve contra si mesma que essa razão se mostra; é nesse
audível quase inaudível que essa razão se descola; é no murmúrio, no
sussurro, no suspiro, no vagido, no gemido que ela se torna acessível.
Claro que é importante o que dizemos. Mas precisamos também de
desenvolver uma sensibilidade ao acontecimento do dizer em si, essa
espécie de respiração sem mais, onde a vida se colhe numa nudez e numa
intensidade originais.
A psicanalista Françoise Dolto recorria,
por exemplo, a um método curioso no acompanhamento que fazia de
crianças: não se limitava a propor-lhes desenhos ou jogos, como é o
habitual, mas praticava, interessada, a escuta e a interlocução com a
linguagem infantil. Porque dizia: quando fica simplesmente chalreando,
numa emissão sonora toda particular, a criança imagina/deseja a presença
de outra pessoa. E imita o que lhe parece ser a linguagem dos adultos,
repetindo-a de uma forma tão modificada que a semântica se torna
abstrata: só o som permanece. O que se pode registar é a vibração. Mas,
com isso, não deixa de exprimir-se e de esperar uma resposta para aquilo
que emitiu... Muitas vezes os adultos ignoram que a criança está em
busca de um intercâmbio. Os balbucios e fonemas são um modo de prolongar
a presença dos outros. Servem à criança não só para comunicar, mas para
comunicar-se. Mais tarde, muito mais tarde, no nosso percurso de
falantes, continua a ser assim, mesmo quando nos sentimos a naufragar
num mar de palavras suspensas e numa comunicação que nos parece
inevitavelmente inacabada.
[©SEMANÁRIO#2415]
IMISSIO
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