A família não é
apenas uma invenção cultural, nem é simplesmente um formato que a
civilização emprestou à vida comum.
Compete-lhe um papel e, com isso,
também uma dignidade que é anterior à própria cultura — porque ela
emerge como raiz da existência. Muitas vezes, só nos apercebemos de tal
muito depois, quando rememoramos o significado desses laços vividos onde
o amor incondicional circula, quando medimos a desmesura da sua
gratuitidade e apreendemos, assim, a grandeza do dom que a família põe
em ato. Por alguma razão vital cada um de nós precisa de uma família, é
fruto e consequência de um ambiente familiar concreto, e é, até ao fim,
um seu construtor.
A família não é uma coisa estática e
preexistente, mas um dinamismo. Não vive da nostalgia de um mapa
idealizado, mas é um chamamento objetivo, uma estrada que se identifica à
medida que vem percorrida, um estaleiro permanente, plástico, cheio de
possibilidades. Não pode ser o piloto automático a comandar o destino de
uma família: esta é uma tarefa na qual a possibilidade de sermos
felizes se joga, uma aventura que se descobre e redescobre em
continuação, que nos empenha com esforço, que pede um investimento total
das nossas forças e, em algumas situações, mesmo daquilo que está para
lá das nossas forças, mas que nos qualifica de uma forma humana
decisiva.
A família é um laboratório do presente que se arrisca, onde todos são protagonistas, num exercício efetivo de corresponsabilidade
Não basta o conhecimento de ontem para
viver bem a família: é preciso o amor atualizado de hoje e o movimento
que ele de novo gera (e recostura, e recompõe, e repara). Não basta a
grata memória passada: é preciso o humilde gesto de hoje; é
indispensável a esperança de hoje com o seu gosto de vida recomeçada,
mesmo se frágil e imprecisa; a entrega mais uma vez repetida. Não, não
basta o pão dos dias anteriores, nem as migalhas reluzentes do que foi. A
família é um laboratório do presente que se arrisca, onde todos são
protagonistas, num exercício efetivo de corresponsabilidade. Não há
simplesmente um que dá e outro que recebe. A família não é lugar para
esquemas unidirecionais, e ninguém é deixado de fora. A atenção, a
paixão e o cuidado, de que cada um é capaz, urdem silenciosamente a
força misteriosa que no conjunto se experimenta.
O Evangelho de Lucas, em relação à
sagrada família de Nazaré, relata um episódio desconcertante: Maria e
José perdem de vista Jesus, procuram-no em vão entre parentes e
familiares e acabam por encontrá-lo, com espanto, num contexto que não
esperavam (no templo, a discutir com os doutores da lei). Quando o
interpelam, não chegam a entender a explicação que ele lhes dá. Mas
regressam os três para casa. Este é, no fundo, um episódio menos
enigmático do que parece, pois a família é o espaço onde acolhemos, uns
dos outros, a verdade que nem sempre conseguimos compreender. A família
é, certamente, o lugar onde nos encontramos, mas também aquele onde nos
perdemos. Por isso, na comunidade familiar, temos sempre de nos buscar,
pois, na verdade, não sabemos onde o outro está. É uma ilusão pensar que
se o outro está próximo sabemos onde está! A beleza da família é esta
aprendizagem serena da diferença, a arte de guardar aquilo que não se
entende, aquilo que, porventura, não é o sonho inicial. Não devemos
supor que a família seja um horizonte de fusão, onde nunca ocorrerão
problemas ou feridas. Pelo contrário. É, talvez, a propósito da família
que correrão, no nosso rosto, as lágrimas mais difíceis que cada um de
nós tem para chorar. Mas o segredo é abraçar tudo isto sem desanimar,
sentindo-se dentro de uma espécie de dança, que, mesmo se nos esvazia,
também enche a nossa taça até ao cimo, até ela transbordar.
Por Pe. José Tolentino Mendonça
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[©SEMANÁRIO#2416 - 16/2/19]
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