Uma das mais belas
correspondências de Natal que conheço é a que o poeta Rainer Maria Rilke
manteve com a mãe, ao longo de 25 anos. Claramente as cartas de ambos
deveriam ser escritas e recebidas antes da festa.
A mãe, Sophia Rilke,
residia estavelmente em Praga, mas Rainer Maria era uma espécie de
apátrida espiritual, girovagando por refúgios de empréstimo, em França,
Itália, Alemanha, Espanha, Rússia, Suíça. A distância geográfica ou as
dificuldades de comunicação não os impediram, porém, de manter, por
longo tempo, um ritual preciso, cheio de ressonâncias: às dezoito horas
em ponto de cada dia 24 de dezembro, quando as mil luzes natalícias
brilham mais ainda como que intensificadas pela chegada do último
crepúsculo antes da grande festividade, eles finalmente abriam, com viva
e lentíssima emoção, a respetiva carta natalícia. Numa dessas missivas,
o poeta explica em detalhe o cúmplice processo de escrita, definindo-o
como uma comum experiência de gestação da alegria. Escrever a carta,
antecipando o efeito que ela causaria no correspondente; selecionar as
palavras, o papel, as imagens, os sons e as cores; calcular exatamente
os tempos que garantiam a chegada ao destinatário — tudo era uma
excitante pré-alegria que deixava o espírito em alvoroço até à vigília,
quando o relógio batia as dezoito horas.
Contudo, o traço porventura mais
surpreendente desta correspondência é que ela constitui um ensaio sobre
aquela solidão que experimentamos no Natal, e que exploramos tão pouco.
Há uma desaceleração interior que, por desconfortável que possa ser,
constitui uma oportunidade para entrar dentro do próprio coração. E o
coração, mesmo no seu quebrantado pulsar, mesmo no seu doloroso
esvaziamento, é, como escreve Rainer Maria Rilke, “uma ilha de Deus, uma
filial do céu”. A solidão própria do Natal vem descrita como uma
irrevogável chamada ao recolhimento. É bom sentir que tudo em nosso
redor, e que nós próprios, de repente, nos aquietamos. E que as horas se
tornam pacatas, entreabertas e misteriosas num modo que nos é
inabitual, para não dizer desconhecido, porque “o infinito nos quer
assim surpreender”. É bom sentir que o vazio que se sobrepõe a todos os
embrulhos que trocamos e que o silêncio interno que fala mais alto que o
vozear querido que nos circunda têm, sem compreendermos como, a forma
de um dom.
Esse vazio, que resiste à avalancha de
consolações que recebemos, é, de facto, o verdadeiro dom: a
possibilidade não de desejar isto ou aquilo, mas de provar a explosão de
um desejo em estado puro, em grau tal que só o podemos abandonar nas
mãos de (um) Deus. O resto, sim, são as circunstâncias externas,
provisórias e passageiras. O poeta insiste em falar à mãe das vantagens
desse máximo recolhimento perante “o antigo, o santo esplendor da
soleníssima vigília”. E escreve: “Devemos permanecer silenciosos e
solitários e pacientes para acolher em nós a graça de uma hora que a
muitos não cega a revelar-se, porque neles há demasiado rumor e uma
escassa ordem. Tudo depende, afinal, de aprender a ligar-se àquilo que é
grande, àquilo que vivemos apenas no coração e que nada pode turbar. Se
nestes momentos de grande recolhimento e elevação compreendemos que a
vida está naquilo que, palpitante e solene, se move em nós e nos
deslumbra com lágrimas que brotam do profundo mais luminoso, então a
modesta confusão que nos circunda ainda, o ordinário e o turbulento que
corre não poderão já fazer-nos desanimar.” Talvez precisemos de abraçar a
solidão de que facilmente fugimos, pois nela, e de uma maneira
carregada de prodígio, acontece o Natal.
[©SEMANÁRIO#2408]
IMISSIO
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