A
maioria dos abusadores é heterossexual porque os heterossexuais são a
maioria. A orientação sexual é irrelevante. O género é que não é
irrelevante: o abuso sexual é um problema masculino a 99%.
Homens
como Carlo Maria Viganò são o maior problema da igreja. Com amigos
assim, igreja não precisa de inimigos. Este bispo afirmou que o flagelo
da pedofilia na igreja tem como causa o “flagelo da homossexualidade”.
Ou seja, Viganò pensa que há ou houve uma vaga de abusos pedófilos na
igreja porque há demasiados gays no clero. Há três coisas a dizer sobre
esta afirmação.
Primeiro, é ignorante. A maioria dos casos de pedofilia é praticada por homens heterossexuais sobre as próprias filhas, netas, afilhadas, enteadas, vizinhas. Não, não estou a culpar a heterossexualidade. A maioria dos abusadores é heterossexual porque os heterossexuais são a maioria. A orientação sexual é irrelevante. O género é que não é irrelevante: o abuso sexual é um problema masculino a 99%.
Como é que a sociedade em geral reagiu aos escândalos da pedofilia? Em vez de enfrentar a realidade (o ataque vem do vizinho, amigo, tio), criou o mito do pedófilo que está à espera das crianças à porta da escola. Como é que parte da igreja está a reagir ao escândalo da pedofilia? Através do mito difuso do padre gay abusador.
Em segundo lugar, a pedofilia tem que ver com poder e impunidade. O abuso sexual nasce naqueles momentos em que o abusador sente que está no ângulo cego da moral e da lei. O abuso nasce quando o violador sente que ninguém vê, quando sente que pode passar impune, quando sente que é invisível aos olhos do que está certo. Platão e Tolkein usaram a metáfora do anel para descrever esta sensação viciante de impunidade: o anel do Sauron do “Senhor dos Anéis” é o anel de Gyges da “República”, isto é, o anel que dá ao seu portador o poder da invisibilidade e da amoralidade. Sim, amoralidade: se ninguém me vê, eu posso escolher o mal sem qualquer tipo de custo.
Na cultura cristã, esta bolha amoral é o pecado original. Quando o homem sente que tem poder e inteligência para construir a sua própria moral, quando o homem sente que é ele (e não Deus) o árbitro moral do seu comportamento, o mal acontece – o mal enquanto escolha livre e consciente.
Neste sentido, a causa da onda de pedofilia na igreja é o clericalismo, isto é, o endeusamento do padre e do clero. Ao seu endeusado pela paróquia, ao sentir-se intocável, o padre ou bispo corre o risco de entrar no pecado como qualquer outra pessoa. O Papa Francisco tem portanto razão quando critica esse pecado chamado clericalismo. É o poder intocável do padre que explica a criação dos ângulos mortos (os recantos) onde os abusos foram/são cometidos. É o poder intocável do bispo que explica depois algo talvez ainda mais grave: o silêncio cúmplice da paróquia, o não querer ver, as manobras clericais para esconder ou refugiar os abusadores. O escândalo da pedofilia pede uma reforma, digamos, constitucional da igreja. Pede uma igreja com mais poder para as mulheres, por exemplo. Não pede de certeza uma campanha de ódio contra bodes expiatórios.
Em terceiro lugar, a declaração do bispo Viganò está impregnada de ódio. Um bispo católico com um discurso sem um pingo de misericórdia é uma contradição nos termos. Viganò parece ser um daqueles cristãos que ainda não chegou a Jonas, quanto mais ao Novo Testamento. Não percebe ou não quer perceber que Nínive é para amar, não para destruir. Nenhum cristão pode odiar um homossexual só porque ele é homossexual. O problema é que Viganò é um daqueles católicos que transforma a igreja numa câmara de ódio contra gays e divorciados.
Com amigos assim, a igreja não carece de inimigos.
Opinião de Henrique Raposo
RENASCENÇA
Primeiro, é ignorante. A maioria dos casos de pedofilia é praticada por homens heterossexuais sobre as próprias filhas, netas, afilhadas, enteadas, vizinhas. Não, não estou a culpar a heterossexualidade. A maioria dos abusadores é heterossexual porque os heterossexuais são a maioria. A orientação sexual é irrelevante. O género é que não é irrelevante: o abuso sexual é um problema masculino a 99%.
Como é que a sociedade em geral reagiu aos escândalos da pedofilia? Em vez de enfrentar a realidade (o ataque vem do vizinho, amigo, tio), criou o mito do pedófilo que está à espera das crianças à porta da escola. Como é que parte da igreja está a reagir ao escândalo da pedofilia? Através do mito difuso do padre gay abusador.
Em segundo lugar, a pedofilia tem que ver com poder e impunidade. O abuso sexual nasce naqueles momentos em que o abusador sente que está no ângulo cego da moral e da lei. O abuso nasce quando o violador sente que ninguém vê, quando sente que pode passar impune, quando sente que é invisível aos olhos do que está certo. Platão e Tolkein usaram a metáfora do anel para descrever esta sensação viciante de impunidade: o anel do Sauron do “Senhor dos Anéis” é o anel de Gyges da “República”, isto é, o anel que dá ao seu portador o poder da invisibilidade e da amoralidade. Sim, amoralidade: se ninguém me vê, eu posso escolher o mal sem qualquer tipo de custo.
Na cultura cristã, esta bolha amoral é o pecado original. Quando o homem sente que tem poder e inteligência para construir a sua própria moral, quando o homem sente que é ele (e não Deus) o árbitro moral do seu comportamento, o mal acontece – o mal enquanto escolha livre e consciente.
Neste sentido, a causa da onda de pedofilia na igreja é o clericalismo, isto é, o endeusamento do padre e do clero. Ao seu endeusado pela paróquia, ao sentir-se intocável, o padre ou bispo corre o risco de entrar no pecado como qualquer outra pessoa. O Papa Francisco tem portanto razão quando critica esse pecado chamado clericalismo. É o poder intocável do padre que explica a criação dos ângulos mortos (os recantos) onde os abusos foram/são cometidos. É o poder intocável do bispo que explica depois algo talvez ainda mais grave: o silêncio cúmplice da paróquia, o não querer ver, as manobras clericais para esconder ou refugiar os abusadores. O escândalo da pedofilia pede uma reforma, digamos, constitucional da igreja. Pede uma igreja com mais poder para as mulheres, por exemplo. Não pede de certeza uma campanha de ódio contra bodes expiatórios.
Em terceiro lugar, a declaração do bispo Viganò está impregnada de ódio. Um bispo católico com um discurso sem um pingo de misericórdia é uma contradição nos termos. Viganò parece ser um daqueles cristãos que ainda não chegou a Jonas, quanto mais ao Novo Testamento. Não percebe ou não quer perceber que Nínive é para amar, não para destruir. Nenhum cristão pode odiar um homossexual só porque ele é homossexual. O problema é que Viganò é um daqueles católicos que transforma a igreja numa câmara de ódio contra gays e divorciados.
Com amigos assim, a igreja não carece de inimigos.
Opinião de Henrique Raposo
RENASCENÇA
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