Mesmo
quando eles cheiram a doença, velhice e morte, mesmo quando é um
sacrifício, visitar e beijar os avós é mais do que um mero afeto: é um
dever.
Um
dos homens que me criou, um verdadeiro avô emprestado, tem Parkinson.
Vê-lo neste declínio às mãos de uma doença incurável e que furta a
própria identidade é um desafio.
Claro que esse desafio aumenta nas minhas filhas. Quando se aproximam deste tio-que-é-avô, sentem um medo instintivo; aquela figura faz gestos estranhos, tem um esganar assustadiço no rosto. O que fazer? Protegê-las, impedindo o seu confronto com a doença e a finitude? Não é aceitável. Não se criam seres morais numa bolha fofinha que impede o confronto com a doença, a velhice e, sim, a morte.
A inevitável doença dos avós e tios tem de fazer parte da educação moral das crianças. Caso contrário, ficamos com um cenário macabro e, infelizmente, cada vez mais comum: os velhos ficam sozinhos, porque as “crianças” ou “jovens” nem sequer conseguem lidar com os cheiros da velhice.
Ir ao lar é uma maçada, porque os corredores cheiram a mictório. Passar uma tarde na casa da avó é uma chatice, porque cheira a mofo e a cabelo oleoso. Cheira a prenúncio de morte. E a morte foi ilegalizada por esta cultura do ‘like’, da eterna juventude, da perpétua escapadinha turística.
Educar crianças longe dos avós e tios é assim um duplo sinal de egoísmo: no presente, há o egoísta abandono dos velhos; no futuro, há a certeza de que estas crianças serão adultos autocentrados e incapazes de lidar com a perda, com o fracasso, com a dor física e mental.
Olhem por favor para os números que crescem todos os dias: infantilizar a criança é alimentar o suicídio do jovem.
Quer isto dizer que as minhas filhas têm de beijar obrigatoriamente aquele tio, aquele avô ou outro adulto? Não. As crianças não devem ser colocadas na bolha, mas têm de ser respeitadas na sua natureza.
As regras do mundo não podem ser só as regras dos extrovertidos. Tenho uma timidez radical. As miúdas herdaram-na, são ariscas e caladas, não dão beijos com facilidade. Em casa ou na rua, ralho com quem não respeita esta timidez. Só que aqui é preciso ter cuidado: é muito ténue a fronteira entre timidez e má-criação. Quando andamos na rua, protejo-as das vizinhas que tentam agarrá-las e beijá-las. No entanto, elas têm de reconhecer a existência daquelas pessoas, nem que seja com um leve acenar da cabeça ou com um distante “bom dia”. Não estão obrigadas a entrar na simpatia extrovertida, mas têm de ser cordiais.
Passa-se o mesmo com os avós ou tios. Elas não são forçadas a cumprir a saudação ideal (o beijo), mas ficam sempre a saber que essa saudação é a medida justa. Mesmo quando eles cheiram a doença, velhice e morte, mesmo quando é um sacrifício, visitar e beijar os avós é mais do que um mero afeto: é um dever.
Por Henrique Raposo
RENASCENÇA
Claro que esse desafio aumenta nas minhas filhas. Quando se aproximam deste tio-que-é-avô, sentem um medo instintivo; aquela figura faz gestos estranhos, tem um esganar assustadiço no rosto. O que fazer? Protegê-las, impedindo o seu confronto com a doença e a finitude? Não é aceitável. Não se criam seres morais numa bolha fofinha que impede o confronto com a doença, a velhice e, sim, a morte.
A inevitável doença dos avós e tios tem de fazer parte da educação moral das crianças. Caso contrário, ficamos com um cenário macabro e, infelizmente, cada vez mais comum: os velhos ficam sozinhos, porque as “crianças” ou “jovens” nem sequer conseguem lidar com os cheiros da velhice.
Ir ao lar é uma maçada, porque os corredores cheiram a mictório. Passar uma tarde na casa da avó é uma chatice, porque cheira a mofo e a cabelo oleoso. Cheira a prenúncio de morte. E a morte foi ilegalizada por esta cultura do ‘like’, da eterna juventude, da perpétua escapadinha turística.
Educar crianças longe dos avós e tios é assim um duplo sinal de egoísmo: no presente, há o egoísta abandono dos velhos; no futuro, há a certeza de que estas crianças serão adultos autocentrados e incapazes de lidar com a perda, com o fracasso, com a dor física e mental.
Olhem por favor para os números que crescem todos os dias: infantilizar a criança é alimentar o suicídio do jovem.
Quer isto dizer que as minhas filhas têm de beijar obrigatoriamente aquele tio, aquele avô ou outro adulto? Não. As crianças não devem ser colocadas na bolha, mas têm de ser respeitadas na sua natureza.
As regras do mundo não podem ser só as regras dos extrovertidos. Tenho uma timidez radical. As miúdas herdaram-na, são ariscas e caladas, não dão beijos com facilidade. Em casa ou na rua, ralho com quem não respeita esta timidez. Só que aqui é preciso ter cuidado: é muito ténue a fronteira entre timidez e má-criação. Quando andamos na rua, protejo-as das vizinhas que tentam agarrá-las e beijá-las. No entanto, elas têm de reconhecer a existência daquelas pessoas, nem que seja com um leve acenar da cabeça ou com um distante “bom dia”. Não estão obrigadas a entrar na simpatia extrovertida, mas têm de ser cordiais.
Passa-se o mesmo com os avós ou tios. Elas não são forçadas a cumprir a saudação ideal (o beijo), mas ficam sempre a saber que essa saudação é a medida justa. Mesmo quando eles cheiram a doença, velhice e morte, mesmo quando é um sacrifício, visitar e beijar os avós é mais do que um mero afeto: é um dever.
Por Henrique Raposo
RENASCENÇA
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