O não de Francisco à pena de morte e à prisão perpétua

1. Em Setembro do ano passado, por ocasião da celebração dos 150 da abolição da pena de morte em Portugal, realizou-se na Universidade de Coimbra um colóquio internacional sobre o tema. A convite do ex-provedor de Justiça José de Faria Costa, fiz uma conferência subordinada ao título "Teologia e Pena de Morte".


Critiquei então veementemente o Catecismo da Igreja Católica pelo facto de nele, no tristemente célebre número 2267 (número de morte), continuar ainda a defesa da pena de morte. Manifestei ao mesmo tempo a firme esperança e até a certeza de que o Papa Francisco acabaria por mudar esse número ("pior do que o 666 do Apocalipse", transportando consigo "a carga de milénio e meio de pacto da Igreja com um tipo de poderes estabelecidos, como se não bastasse Jesus e a Igreja tivesse de apoiar-se num duvidoso "direito natural", como se ela pudesse ditar a sua moral aos Estados e tivesse de renunciar à "libertação" de Jesus e à presença do Reino, permitindo meter na prisão e matar os "maus", para que os outros, os "bons", pudessem viver tranquilos", escreveu o biblista Xabier Pikaza).

Não há dúvida nenhuma de que o Novo Testamento está na base do movimento abolicionista moderno. Pense-se nas bem-aventuranças, no preceito de Jesus que manda amar os inimigos, no seu procedimento com a adúltera... E não está o cristianismo no fundamento da dignidade inviolável da pessoa humana, como é reconhecido pelos grandes filósofos Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas? E como pode a Igreja ser incondicionalmente a favor da vida, como mostra a condenação do aborto e da eutanásia, e ao mesmo tempo justificar a pena de morte?

2. O que dizia o número 2267? "A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor. Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana. Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu 'são muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes'."

No passado dia 2 deste mês, Francisco veio reafirmar o que já declarara no discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de Outubro de 2017: "A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo." Assim, o número 2267, revisto, agora diz: "Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente a possibilidade de se redimir. Por isso, a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo."

É de sublinhar a afirmação: a dignidade é inerente à pessoa humana e não se perde nunca, nem sequer depois de ter cometido os mais graves crimes. Fica, pois, eliminada qualquer possibilidade de aprovação da pena de morte. Numa carta enviada aos bispos de todo o mundo pelo prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria, Francisco vai citando papas anteriores, concretamente, João Paulo II e Bento XVI, que já tinham dado orientações neste sentido, constatando que, independentemente das modalidades de execução, ela "implica um tratamento cruel, desumano e degradante" e sublinhando ainda "a possibilidade de erro judicial".

"A nova formulação do número 2267 do Catecismo da Igreja Católica", diz ainda a carta, concluindo, "quer ser um impulso para um compromisso firme, inclusive através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, para que se favoreça uma mentalidade que reconheça a dignidade de cada pessoa humana e se criem as condições que permitam eliminar hoje a instituição jurídica da pena de morte onde ainda está em vigor".

Há no mundo 57 países que ainda aplicam a pena de morte. O Catecismo agora modificado quer ser uma autoridade moral a favor da tese abolicionista.

3. Neste contexto, põe-se a questão da prisão perpétua. Na linha da esperança e da regeneração, que a todos devem ser concedidas, percebe-se que o Papa Francisco se lhe oponha. Sobre isso, pronunciou-se explícita e claramente no livro de conversas com Thomas Leoncini, "Deus é jovem": "Nunca se pode castigar sem esperança"; é por isso que sou contra seja a pena de morte, seja a prisão perpétua interpretada como sendo "para sempre". Existem países onde a pena de morte é legal e a tortura habitual. Gostaria de dizer aos chefes de Estado de todo o mundo e a todos nós que reflitam e nunca cessem de fazê-lo: privar um ser humano da possibilidade, ainda que mínima, de ter esperança, significa matá-lo duas, três, quatro, cinco vezes. Significa matá-lo todas estas vezes, cada dia da sua vida. Na verdade, isto é muito triste, tudo maneiras de mostrar às pessoas, desde crianças, que a esperança não existe. Quando se termina nos braços da morte, não há esperança; se se condena alguém a prisão perpétua, não há esperança, e isto é profundamente errado: deve sempre haver esperança na nossa vida, e, por conseguinte, em cada punição.

4. Aqui, tem lugar uma pergunta imensa e dramática: que pensará Francisco sobre o inferno? A pergunta tem sentido, ao pensar na inscrição que, segundo A Divina Comédia, de Dante, na linha do "dogma" católico, se encontra à porta do inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate" ("Abandonai toda a esperança, vós que entrais").


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