Escolher
não ter filhos não é uma decisão estética de “lifestyle”, é uma decisão
moral que está no centro da orgânica e da sobrevivência da própria
sociedade.
É
uma daquelas coisas que me tiram do sério: os jornais colocam as peças
sobre filhos e paternidade/maternidade na secção de “lifestyle” ao lado
de peças sobre sapatos, óculos enquanto acessório de moda ou sobre
queijo de cabra da Guatemala temperado com sal importado de umas salinas
penduradas num qualquer jardim suspenso do trendismo.
Esta arrumação imbecil é um dos sintomas da destruição moral da família e da certeza de que a vida civilizada depende do sacrifício em prol dos outros; é a consagração do egoísmo enquanto valor. Só não lhe chamam “egoísmo”, chamam-lhe “lifestyle”. É por isto que gostei bastante da coragem da escritora Zadie Smith. E é mesmo coragem.
Numa entrevista a um site feminista polaco (News Mavens), Zadie Smith acerta na mouche: “a minha geração atirou a decisão de ter filhos para o mesmo cesto em que estão as decisões sobre uma camisa ou telefone”.
Não ter filhos até pode ser uma decisão legítima. Um casal pode chegar à legítima conclusão que seria péssimo com filhos, que não teria jeito, ou que já tem demasiadas despesas com outras pessoas (familiares acamados, por exemplo). O que não é legítimo é esta cultura que transforma a decisão de não ter filhos numa mera escolha estética, numa mera opção pessoal sem carga social e moral. De novo, vemos aqui a tempestade perfeita do egoísmo libertário, que resulta da junção do pior da esquerda com o pior da direita.
O pós-modernismo de esquerda isolou o “eu” de qualquer dever, narrativa ou moral colectiva; o “eu” é soberano e está sozinho; nesta mundividência, diz-se que ninguém deve criticar a ausência de filhos num casal porque cada um sabe de si, porque não existe qualquer critério ou dever moral exterior ao “eu”. À direita, muitos divinizam o mercado, reduzindo o ser humano ao papel de consumidor. A pessoa x só quer ver o mundo de certa forma? Tudo bem, passa a “informar-se” num site de fake news que lhe abastece o mural de facebook com coisas do seu agrado; a verdade e a informação são feitas à medida do gosto. A pessoa y acha que escolher ter não ter filhos é como escolher não ir aos festival de verão ou não ter iphone? Tudo bem, a sua liberdade de consumidora é total.
Estas argumentações têm um sério problema: ninguém vive numa gruta associal. Estas posições só seriam válidas se os casais que escolhem não ter filhos vivessem como eremitas numa caverna longe da sociedade, longe da protecção dada pelo estado de direito financiado pelos impostos dos casais com filhos e pelos filhos desses casais, longe da protecção social dada pelo estado social financiado pelos casais com filhos e pelos filhos desses casais, longe da reforma e da segurança social que serão financiadas pelos filhos dos casais que tiveram filhos, longe dos sinos que tocam. Como isto não acontece, ninguém pode argumentar que a decisão de não ter filhos é uma decisão da soberania total do “eu” isolado.
Do ponto de vista moral e cívico, não ter filhos até é mais pesado e questionável do que não votar. Trata-se de uma abstenção ainda mais pesada, porque o futuro da sociedade não pode mesmo contar de forma continuada com o contributo daquele casal “free rider”. Ser “free rider” até pode ser legítimo, mas é e será sempre questionável ou criticável. Escolher não ter filhos não é uma decisão estética de “lifestyle”, é uma decisão moral que está no centro da orgânica e da sobrevivência da própria sociedade.
Opinião de Henrique Raposo
Esta arrumação imbecil é um dos sintomas da destruição moral da família e da certeza de que a vida civilizada depende do sacrifício em prol dos outros; é a consagração do egoísmo enquanto valor. Só não lhe chamam “egoísmo”, chamam-lhe “lifestyle”. É por isto que gostei bastante da coragem da escritora Zadie Smith. E é mesmo coragem.
Numa entrevista a um site feminista polaco (News Mavens), Zadie Smith acerta na mouche: “a minha geração atirou a decisão de ter filhos para o mesmo cesto em que estão as decisões sobre uma camisa ou telefone”.
Não ter filhos até pode ser uma decisão legítima. Um casal pode chegar à legítima conclusão que seria péssimo com filhos, que não teria jeito, ou que já tem demasiadas despesas com outras pessoas (familiares acamados, por exemplo). O que não é legítimo é esta cultura que transforma a decisão de não ter filhos numa mera escolha estética, numa mera opção pessoal sem carga social e moral. De novo, vemos aqui a tempestade perfeita do egoísmo libertário, que resulta da junção do pior da esquerda com o pior da direita.
O pós-modernismo de esquerda isolou o “eu” de qualquer dever, narrativa ou moral colectiva; o “eu” é soberano e está sozinho; nesta mundividência, diz-se que ninguém deve criticar a ausência de filhos num casal porque cada um sabe de si, porque não existe qualquer critério ou dever moral exterior ao “eu”. À direita, muitos divinizam o mercado, reduzindo o ser humano ao papel de consumidor. A pessoa x só quer ver o mundo de certa forma? Tudo bem, passa a “informar-se” num site de fake news que lhe abastece o mural de facebook com coisas do seu agrado; a verdade e a informação são feitas à medida do gosto. A pessoa y acha que escolher ter não ter filhos é como escolher não ir aos festival de verão ou não ter iphone? Tudo bem, a sua liberdade de consumidora é total.
Estas argumentações têm um sério problema: ninguém vive numa gruta associal. Estas posições só seriam válidas se os casais que escolhem não ter filhos vivessem como eremitas numa caverna longe da sociedade, longe da protecção dada pelo estado de direito financiado pelos impostos dos casais com filhos e pelos filhos desses casais, longe da protecção social dada pelo estado social financiado pelos casais com filhos e pelos filhos desses casais, longe da reforma e da segurança social que serão financiadas pelos filhos dos casais que tiveram filhos, longe dos sinos que tocam. Como isto não acontece, ninguém pode argumentar que a decisão de não ter filhos é uma decisão da soberania total do “eu” isolado.
Do ponto de vista moral e cívico, não ter filhos até é mais pesado e questionável do que não votar. Trata-se de uma abstenção ainda mais pesada, porque o futuro da sociedade não pode mesmo contar de forma continuada com o contributo daquele casal “free rider”. Ser “free rider” até pode ser legítimo, mas é e será sempre questionável ou criticável. Escolher não ter filhos não é uma decisão estética de “lifestyle”, é uma decisão moral que está no centro da orgânica e da sobrevivência da própria sociedade.
Opinião de Henrique Raposo
15 jun, 2018
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