Ao abrigo de um equívoco designado por Escola a Tempo Inteiro e apesar de boas práticas que existem, muitas crianças passam horas sem fim sentados ou, quase, paradas. Em casa, o cenário é do mesmo tipo só que em frente de um ecrã
Recentemente
foram divulgados pelo Instituto de Avaliação Educativa os resultados
das provas de aferição realizadas em 2017. A imprensa deu particular
relevo a alguns indicadores mostrados pelos alunos do 2º ano do 1º ciclo
na área da Actividade Física.
Como
exemplo destes indicadores podemos referir que 46% das crianças não
conseguiu saltar à corda, 40% não conseguiu executar uma cambalhota para
a frente ou que 31% não realizou adequadamente o jogo infantil ajustado
à sua idade.
As reacções foram múltiplas procurando encontrar explicações e responsabilidades.
Algumas notas.
Mais
do que um olhar sobre as especificidades das tarefas referidas o que me
parece mais crítico e merecer atenção é o nível global de realização de
actividades físicas por parte de muitas crianças.
Recordo
que já em Fevereiro deste ano o Conselho Nacional das Associações de
Professores e de Profissionais de Educação Física alertava para que boa
parte dos alunos do 1º ciclo, por razões de natureza diversa e apesar de
algumas boas práticas e iniciativas, não realizam regularmente
actividades de Educação Física.
No
entanto, quando em diferentes contextos se abordam questões relativas ao
mundo da infância, uma das mais frequentes afirmações dirigidas ao
comportamento das crianças e adolescentes é “Estas crianças não param”
ou algo no mesmo sentido. Contudo, apesar da frequência com que ouvimos
expressões deste teor, elas parecem desajustadas pois, de facto, as
crianças não se mexem e também por isso provavelmente... "não param".
Segundo
o Relatório “Health at a Glance: Europe 2016” da OCDE, em Portugal,
mais de uma em cada quatro crianças tem excesso de peso. Nas raparigas
ultrapassa os 30% e nos rapazes temos 25%.
Acresce
que no que respeita à actividade física e considerando a recomendação
da OMS de uma hora diária de actividade física aos 11 anos só 16% das
raparigas e 26% dos rapazes a cumprem e aos 15 anos temos 5% das
raparigas e 18% dos rapazes.
É ainda
de referir que estudos realizados em Portugal mostram que a obesidade
infantil, um dos valores mais altos da UE, é já um problema de saúde
pública associado, por exemplo, ao disparar de casos de diabetes tipo II
em crianças. Parece, pois, evidente a importância que deve merecer a
questão dos hábitos alimentares e o combate ao sedentarismo, sobretudo
nos mais novos.
Ainda no que respeita à
actividade física, um trabalho da Universidade de Coimbra divulgado em
2013 sublinhava de novo o impacto que o sedentarismo tem na saúde das
crianças. Este estudo envolveu 17424 crianças entre os 3 e os 11 anos e
mostrou uma relação significativa entre hábitos fortemente sedentários,
ver televisão por tempo excessivo por exemplo, e problemas na saúde e
bem-estar dos miúdos.
Um outro
trabalho de 2012 da Faculdade de Motricidade Humana envolvendo cerca de
3000 alunos evidenciava o efeito positivo da actividade física no
rendimento escolar para além dos evidentes benefícios para a saúde.
De
facto, o quotidiano de crianças e adolescentes está excessivamente
preenchido com actividades que solicitam pouca actividade física. Ao
abrigo de um equívoco designado por Escola a Tempo Inteiro e apesar de
boas práticas que existem, muitas crianças passam horas sem fim sentados
ou, quase, paradas. Em casa, o cenário é do mesmo tipo só que em frente
de um ecrã.
Parece
estar adquirido que a generalidade dos estudos comprovam que o nível de
actividade física de crianças e adolescentes está francamente abaixo do
desejável. Por outro lado, este é o equívoco a que me referia,
instalou-se a “ideia” de que as crianças e adolescentes não param, são
muito activas, algumas até mesmo “hiperactivas” pelo que os desejos de
muitos pais e professores é que estejam mais “calmas”, mais “sossegadas”
e não tão “activas”, às vezes até são medicadas para que se aquietem.
Por
isso e de uma vez por todas, que crianças e adolescentes não parem, que
as não envolvam e incentivem a actividade sedentária tantas horas por
dia e que ajudemos todos os pais e comunidades a construir alternativas
que sejam atractivas para os tempos dos mais novos.
É uma questão de saúde, física e mental, para crianças e adolescentes e, também, para os adultos que lidam com eles.
No
trabalho com pais refiro com frequência a importância que também têm as
actividades ao ar livre que deveriam ser uma rotina e não uma excepção
na educação formal e não formal dos mais novos.
Somos
dos países da Europa em que adultos e crianças menos desenvolvem
actividades no exterior contrariamente, por exemplo ao que se verifica
nos países nórdicos apesar das diferenças de clima.
O
que me preocupa seriamente é que o brincar da infância vai-se
encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não
precisarem de brincar.
Ainda no caso
mais particular mas também essencial do brincar no exterior, as questões
da segurança e, sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada
nos valores e nos equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, têm
levado a que brincar na rua começa a ser raro.
Embora
consciente das variáveis risco, segurança e estilos de vida das
famílias, creio que seria possível alguma oportunidade de “devolver” aos
miúdos o circular e brincar na rua, talvez com a supervisão de velhos
que estão sozinhos as comunidades e as famílias conseguissem alguns
tempos e formas de ter as crianças por algum tempo fora das paredes de
uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.
No
imperdível “O MUNDO o mundo é a rua da tua infância”, Juan José Millás
recorda-nos como a rua, a nossa rua foi o princípio do nosso mundo e nos
marca. Quantas histórias e experiências muitos de nós carregam vindas
do brincar e andar na rua e que contribuíram de formas diferentes para
aquilo que somos e de que gostamos.
Como
muitas vezes tenho escrito e afirmado, o eixo central da acção
educativa, escolar ou familiar, é a autonomia, a auto-regulação, a
capacidade e a competência para “tomar conta de si”. A rua, a abertura, o
espaço, o risco (controlado obviamente), os desafios, os limites, as
experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção
dessa autonomia.
Talvez, devagarinho e
com os riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua,
mesmo que por pouco tempo e não todos os dias. Eles iriam gostar e
far-lhes-ia bem.
Saberiam dar cambalhotas, saltar à corda ou realizar jogos infantis de grupo.
(Texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
EDUCAÇÃO
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