Todos os deputados que se levantarem para votar pelo sim à
eutanásia, mesmo sem mandato para isso, já sabem que estarão a votar
contra a própria sociedade e até contra a Medicina. Qual é a pressa?
Qual é a pressa de legislar a despenalização da eutanásia e do
suicídio assistido? Quem corre atrás de quem? Há alguém à espera do sim
da maioria dos deputados para dar asas ao negócio? Para reforçar o
lobbying e o networking para poder começar a angariar clientes
rapidamente? Alguém para quem é importante estabelecer business planse
definir estratégias de marketing para projectos cuja eficácia se mede
exclusivamente através da garantia de que todos os clientes morrem e
nenhum fica vivo? Pergunto, porque não percebo a pressa. Nem eu, nem
muitos outros, que gostariam de sentir a mesma urgência legislativa para
garantir cuidados paliativos a todos, sem excepção. Isto, para dar o
exemplo verdadeiramente inadiável e imperativo em matéria de cuidados
para com os mais vulneráveis e sofredores.
Todos sabemos que a
eutanásia é um tema complexo, delicado, sensível e fraturante. Ninguém
pede para morrer de ânimo leve. Absolutamente ninguém. Quem o faz está
em sofrimento profundo e sente-se incapaz de lidar com esse mesmo
sofrimento, tantas vezes vivido em cúmulos impensáveis de meses ou anos.
Várias vezes assisti a situações gritantes e vi como tudo evoluiu.
Falo, felizmente, de uma evolução no sentido resgatador e humanizante do
termo, pois todas as pessoas que na minha frente suplicaram para morrer
ou pediram eutanásia, foram socorridas, cuidadas e acompanhadas por
equipas multidisciplinares de profissionais de saúde, capazes de validar
as suas dores e sofrimentos, mas também com ciência e competência para
as saber tratar de forma a minimizar os seus tormentos físicos e
psíquicos.
Todas, sem excepção, viriam a morrer de morte natural,
sem tratamentos fúteis e sem qualquer forma de obstinação terapêutica.
Com todas, também sem excepção, me foi dado viver esse tempo de fim de
vida (para umas mais longo e para outras mais curto) em que se
reconciliaram com a ideia do seu próprio fim, com as limitações
decorrentes da sua doença e, em certos casos, até com familiares ou
amigos com quem tiveram desavenças ao longo da vida. Graças aos cuidados
paliativos, que se estendem sempre às famílias e cuidadores, nenhuma
destas pessoas morreu revoltada ou sem paz interior. Muito pelo
contrário.
Escrevo com emoção, por ser verdade e me ter sido dado
partilhar incontáveis vezes esta mesma realidade. Confesso que em
algumas alturas senti perplexidade perante o processo de transformação
interior das pessoas mais aflitas, mais apavoradas ou mais zangadas com a
vida ou com a sua doença. Não falo de pessoas crentes, note-se, pois as
que mais me marcaram nem sequer professavam qualquer tipo de religião. O
que me foi dado viver à cabeceira de homens e mulheres que só conheci
no auge da sua vulnerabilidade não é traduzível por palavras. Talvez nem
seja explicável à luz da ciência ou da fé e faça apenas parte do grande
e insondável mistério que é a vida. E a morte.
Estive à cabeceira
de crianças, jovens e adultos durante anos a fio. Fiz, primeiro, 10
anos de voluntariado na Acreditar, e depois mais 3 numa unidade de
Cuidados Paliativos. Isto sem contar com o ano inteiro que passei a
caminho do hospital por causa da minha afilhada Joana (teve cancro aos
10 anos e ficou internada numa enfermaria de adultos durante demasiado
tempo, mas felizmente sobreviveu e hoje em dia, apesar de ter sequelas e
condicionantes, é uma jovem adulta apaixonada e realizada). Também
permaneci longas e dolorosas horas ao lado de dois jovens que me eram
muitíssimo queridos e me abstenho de nomear por infelizmente já não
estarem entre nós.
Tenho 56 anos, não sou médica nem enfermeira,
apenas voluntária com formação dada por profissionais de saúde e de
comunicação, mas olhando retrospectivamente para a minha vida, dou-me
conta de que passei quase 20 anos muito próxima de pessoas muito
doentes, muito vulneráveis, em situação de grande sofrimento físico,
moral e emocional. Sempre que uma destas pessoas pediu para morrer ou
gritou que era incapaz de viver na situação em que estava, assisti a
movimentos extraordinários de profissionais, a actuações de
especialistas que se empenharam totalmente em aliviar o sofrimento e
resgatar o sentido de vida de cada uma destas pessoas em crise ou
desespero. Nunca vi estas equipas de profissionais de saúde desistirem
ou concordarem que o melhor seria eliminar os seus doentes. E ao não
desistirem, conseguiram também devolver-lhes a dignidade e a serenidade
de que precisavam para atravessar a doença e lidar com ela sem
desanimar, justamente por se saberem bem acompanhados e bem cuidados.
Todos
estes profissionais, mas de forma ainda mais crucial, todas as pessoas
doentes (especialmente os desistentes) que foram capaz de recuperar o
alento e a esperança, reforçaram a minha perspectiva sobre o que é
humano e o que é desumano.
Humano é acorrer rapidamente à chamada
do doente e da sua família, ou cuidadores, sempre que há dor,
desconforto ou alguma forma de sofrimento. E fazer tudo para eliminar ou
minimizar padecimentos e tormentos.
Desumano seria eliminar a pessoa que sofre, para que ela deixe de sofrer.
Humano
é procurar e encontrar entre os profissionais de saúde uma resposta
multidisciplinar, unindo esforços e saberes no sentido de acompanhar o
doente, melhorando a sua condição física e atenuando a sua dor moral e
emocional.
Desumano seria deixar abandonar o doente no auge do seu
sofrimento, desistir dele no máximo da sua fragilidade, concordando com
ele que a sua vida não faz sentido nem acrescenta nada a niguém.
Humano
é abraçar e consolar, mas como não é disso que se trata quando o
sofrimento é desmesurado e continuado, o que é humano é valorizar a vida
em todas as suas fases, especialmente nas mais vulneráveis ou
dolorosas, não desistindo nunca de cuidar e de acompanhar.
Desumano
seria ver alguém no extremo das suas forças, testado, provado para além
dos limites, e quebrar também os laços de confiança, dizendo-lhe que
não havendo nada a fazer para a cura, mais vale a morte.
Humano é
fazer tudo o que estiver ao alcance da medicina e dos diversos saberes
complementares para melhorar a vida dos doentes e atenuar o peso que a
doença tem nos seus cuidadores.
Desumano é concordar que a vida
com sofrimento é intolerável, que a velhice é um estado deplorável e a
doença incurável é um fardo insustentável.
Por tudo isto e em nome
do Homem e da sociedade humana, houve um encontro recente em Lisboa que
também é inédito no mundo. Nunca até hoje tantos representantes de
tantas e tão diferentes religiões e crenças se tinham juntado para
defender o valor da vida humana, a sua inviolabilidade e a ética com que
tem que ser cuidada do início ao fim.
Na semana passada, o
Patriarca de Lisboa, o Rabino, o Sheik, os representante dos hindus, dos
Bahai, dos Evangélicos, dos Adventistas, dos Ortodoxos, de muitos
outros cristãos e dos budistas assinaram uma declaração conjunta sobre a
eutanásia, repudiando-a e deixando bem clara a sua posição sobre aquilo
que os deputados da nação se preparam para discutir e votar no dia 29.
Todos
os deputados que se levantarem para votar pelo sim à eutanásia já sabem
que estarão a votar contra uma esmagadora maioria de médicos, contra
uma esmagadora maioria de enfermeiros, contra as orientações do Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida, contra incontáveis
profissionais de saúde e inumeráveis cidadãos (frágeis e menos frágeis),
mas a partir da semana passada passaram a ter consciência de que também
votarão contra a esmagadora maioria de religiões e crenças nas quais
uma esmagadora maioria de cidadãos se revê. Ou seja, mesmo sem mandato
para isso, estarão a votar contra a própria sociedade e até contra a
Medicina. Assim sendo, insisto e pergunto: qual é a pressa, senhores
deputados?
Por Laurinda Alves
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