Nunca fui autónoma, mas isso não me tornou menos digna em nenhum dos dias, desde que nasci. É por isso que não posso ficar em silêncio, numa altura em que nos preocupamos em como ajudar os outros a morrer.
Enquanto encararmos as nossas incapacidades como tragédias, terão pena de nós. Enquanto sentirmos vergonha de quem somos, as nossas vidas serão vistas como inúteis. Enquanto ficarmos em silêncio, serão outras pessoas a dizer-nos o que fazer” (Adolf Ratzka).
Sim, eu tenho 95% de incapacidade motora, avaliada por uma
Junta Médica. Mas a minha vida nunca foi uma tragédia, apesar de todos
os “tsunamis” que tive de enfrentar. A minha vida não é inútil porque
sei que através dela posso ser relevante para quem acha que já perdeu a
esperança. Os outros até podem dizer-me o que fazer, mas a minha
liberdade individual levou sempre a melhor, ainda que “aprisionada” numa
cadeira de rodas. Sabem porquê? Porque eu nunca tive vergonha de pedir
ajuda, para viver. Nunca fui autónoma, mas isso não me tornou menos
digna em nenhum dos dias, desde que nasci. É por isso que não posso
ficar em silêncio, numa altura em que nos preocupamos em como ajudar os
outros a morrer. E se ajudássemos os outros a viver?
Se calhar
mais do que ser pró-vida - ao defender a vida independente e assistida e
os cuidados continuados e paliativos, ao alcance de todos - sou
fundamentalmente contra uma coisa: isto do ser-se “morno” e a descambar
para o contraditório. Quem defende o chamado “direito a morrer com
dignidade”, não me convence que é a favor da vida. A favor da vida é
quem dá, se for preciso, a própria vida (e com isto quero dizer, o seu
tempo, a sua entrega, dedicação, presença e atenção) aos outros. É quem
ajuda os outros a viver.
Esta semana ouvi uma frase que contraria
aquilo que considero óbvio: “SE eu não fizer pelos outros, quem o
fará?” - basicamente o resumo de toda a vida de Jesus na terra, aquele
que considero ser o maior Mestre da Inclusão, de todos os tempos. Em
oposição a isto temos “o mantra da auto-ajuda” que defende: “SE eu não
fizer por mim, quem o fará?”.
Achamos
que estamos a ser profundamente solidários ao nos colocarmos do lado
dos que dizem “sim” a ajudar alguém a acabar com o seu “sofrimento
profundo”. Que acto de altruísmo este! Afinal, se não há auto-ajuda, nós
damos uma mãozinha…! Pergunto: seremos nós alguma vez capazes, enquanto
seres humanos limitados, de compreender o sofrimento de alguém? Seremos
nós alguma vez capazes, enquanto seres humanos limitados, de decidir
quando ele deve terminar?
Para aqueles que dizem que temos o
direito à vida e à morte, não concordo que isto seja assim tão linear.
Porque direito à vida, como eu o entendo, não foi uma decisão minha.
Primeiro, existi; a seguir é que percebi que estava na vida, logo tinha o
direito a vivê-la (no meu caso, prefiro considera-la um dever!), a
partir do momento em que fui colocada cá. A vida é para todos uma viagem
com principio, meio e fim. Agora, direito a querer morrer, a morrer de
facto e a querer que me matem, são coisas totalmente diferentes.
Chamando
as coisas pelos nomes: se eu quiser acabar com a minha vida, é
suicídio. Se alguém acabar com a minha vida, é homicídio. O resto? Para
mim está claro: o resto é um emaranhado de fios que confundem
amor-próprio com egoísmo, compaixão com piedade, direitos com deveres,
dor com sofrimento e o que significa realmente a tão repetida
“dignidade”. Os defensores da eutanásia acham mesmo que ajudar uma
pessoa a morrer é estar a fazer algo por ela? Sou obrigada a concordar:
ajudar alguém a morrer é tirar-lhe a vida. É, sem eufemismos, matar essa
pessoa.
Dentro de dias a agenda mediática vai falar da
celebração internacional das Doenças Raras, como é a minha - e atenção
que eu sou uma abençoada na minha condição de deficiente. Experimentem
pesquisar sobre isso e vão ver que isto de ter uma doença rara é cada
vez menos raro. Viver com uma doença terminal, também já deixou de ser
raro. Raro é quem tem a capacidade de ajudar os outros a viver. Raro é
quem está com o outro como uma extensão de si mesmo - como um leitor
fiel e presente - em vez de ter um papel de co-autoria no fim da
história. Raro é viver a vida como um milagre diário, agora e até à hora
(natural) da nossa morte.
Por Mafalda Ribeiro
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