«Um diálogo na verdade.» A dois passos da catedral de Notre
Dame, em Paris, pediu-o e cumpriu-o a 9 de abril o presidente francês,
Emmanuel Macron, na presença de 400 convidados, no contexto de um
encontro organizado pela Conferência Episcopal Francesa.
A sessão ocorreu no Colégio dos Bernardinos, edificado no séc.
XIII pelos seguidores de S. Bernardo de Claraval e que o cardeal
Jean-Marie Lustigier transformou em centro de diálogo entre o
cristianismo e as correntes culturais e intelectuais da
contemporaneidade.
A relação Igreja-Estado em França está «semeada de
mal-entendidos e desconfianças recíprocas», reconheceu o presidente
perante um público à espera de respostas, após um início de mandado
marcado por novas perspetivas, mas também por incógnita profundas e
ambiguidades.
«Sim, a França fortaleceu-se pelo compromisso dos católicos»,
reconheceu Macron, assegurando que a laicidade «não tem como função
negar o que é espiritual em nome daquilo que é temporal».
No passado, muitos «políticos desconsideraram profundamente os
católicos», assinalou, apontando também os cálculos de quem os procurou
explorar. «As vossas perguntas são para toda a nação», vincou,
pedindo «solenemente» aos católicos que não se sintam «à margem da
República».
«Ao ouvir a Igreja sobre esses temas [migrações, bioética] não
encolhemos os ombros. Nós ouvimos uma voz que extrai a sua força do real
e a sua clareza de um pensamento em que a razão dialoga com uma
conceção transcendente do homem»
A França precisa da «linfa católica», inclusive no compromisso político na frente europeia, exigência que Macron afirmou partilhar com os bispos, autores de um documento nesse sentido no início da campanha para o Eliseu. «A República espera muito de vós», insistiu o presidente, que pediu aos católicos os «dons» da «sabedoria», «empenho» e «liberdade».
Falando durante quase uma hora, num discurso que citou Pascal, Mounier, Ricoeur, Marion, Lustiger, Bento XVI e Francisco, entre outros, o presidente criticou o relativismo e o niilismo, assinalou o desaparecimento do conceito de «salvação» das sociedades e referiu-se à vida monástica como «exercício de liberdade».
Em relação aos migrantes, Macron defendeu que o governo procura «a conciliação entre direito e humanidade», em nome de um «humanismo realista». Sobre a bioética, campo de fortes tensões entre a Igreja e o executivo, declarou: «Escuto a Igreja, a vossa voz, quando se trata de não reduzir tudo à técnica». Manifestou ainda a convicção de que é preciso «encontrar o limite» quanto às possibilidades tecnológicas.
Excertos da intervenção
«Para nos encontrarmos aqui esta noite, Reverendíssimo Senhor [D. Georges Pontier, arcebispo de Marselha, presidente da Conferência Episcopal Francesa], nós, vós e eu, enfrentámos os céticos de cada lado. E se o fizemos é porque sem dúvida partilhamos confusamente o sentimento de que o laço entre a Igreja e o Estado se deteriorou, e que importa-nos, tanto a vós como a mim, repará-lo. Para tal não há outro meio a não ser um diálogo na verdade. Este diálogo é indispensável, e se eu devesse resumir o meu ponto de vista, diria que uma Igreja que pretendesse desinteressar-se das questões temporais não iria ao fim da sua vocação; e que um presidente da República que pretendesse desinteressar-se da Igreja e dos católicos faltaria ao seu dever.»
«Estou convencido de que os laços mais indestrutíveis entre a nação francesa e o catolicismo foram forjados nesses momentos onde se verificou o valor real dos homens e das mulheres. Não é preciso remontar aos edificadores das catedrais e a Joana d'Arc: a história recente oferece-nos mil exemplos, desde a União Sagrada de 1914 até aos resistentes de 40, dos Justos aos refundadores da República, dos Pais da Europa aos inventores do sindicalismo moderno, da gravidade eminentemente digna que se seguiu ao assassinato do P. Hamel à morte do coronel Beltrame, sim, a França foi fortalecida pelo compromisso dos católicos.
«Não podemos mais, no mundo tal como está, satisfazer-nos com um
progresso económico ou científico que não se interrogue acerca do seu
impacto sobre a humanidade e sobre o mundo. (...) Ora, não é possível
avançar neste caminho sem cruzar o caminho do catolicismo»
Dizendo isto, não me engano. Se os católicos quiseram servir e engrandecer a França, se aceitaram morrer, não foi apenas em nome de ideais humanistas. Não foi apenas em nome de uma moral judeocristã secularizada. Foi também porque eles foram impelidos pela sua fé em Deus e pela sua prática religiosa.
Alguns podem considerar que estas afirmações infringem a laicidade. Mas, vendo todas as coisas, contamos também com mártires e heróis de todas as confissões e a nossa história recente tem-nos mostrado isso, e inclusive com ateus, que encontraram na profundidade da sua moral as fontes de um sacrifício completo. Reconhecer uns não é diminuir os outros, e eu considero que a laicidade não tem certamente como função negar o espiritual em nome do temporal, nem de desenraizar das nossas sociedades a parte sagrada que alimenta muitos dos nossos concidadãos.
Sou, como chefe de Estado, garante da liberdade de crer e de não crer, mas não sou nem o inventor nem o promotor de uma religião de Estado que substitui à transcendência divina um credo republicano.
Cegar-me voluntariamente diante da dimensão espiritual que os católicos investem na sua vida moral, intelectual, familiar, profissional, social, seria condenar-me a não ter da França senão uma visão parcial; seria desconhecer o país, a sua história, os seus cidadãos; e ao tocar a indiferença, derrogaria a minha missão.»
«Devemos constantemente evitar a tentação de agir como meros
administradores do que nos foi confiado. E é por isso que o nosso
intercâmbio deve fundar-se não na solidez de certas certezas, mas na
fragilidade do que nos interroga, e por vezes nos desampara»
«Hoje, neste momento de grande fragilidade social, quando o próprio tecido da nação corre o risco de ser dilacerado, considero ser minha responsabilidade não deixar erodir-se a confiança dos católicos na política e políticas. (...) É ainda mais verdade que a situação atual é menos o resultado de uma decisão da Igreja do que o resultado de vários anos durante os quais os políticos ignoraram profundamente os católicos da França.»
«Por razões biográficas, pessoais e intelectuais, tenho uma ideia elevada dos católicos. E não me parece saudável nem bom que a política esteja tão determinada em explorá-los ou ignorá-los, quando é de um diálogo e cooperação de um tipo bem diferente, de uma contribuição de um peso completamente diferente para a compreensão do nosso tempo e para a ação que precisamos para fazer com que as coisas evoluam no bom sentido.»
«A urgência da nossa política contemporânea é de reencontrar o seu enraizamento na questão do homem ou, para falar com Mounier, da pessoa. Não podemos mais, no mundo tal como está, satisfazer-nos com um progresso económico ou científico que não se interrogue acerca do seu impacto sobre a humanidade e sobre o mundo. (...) Ora, não é possível avançar neste caminho sem cruzar o caminho do catolicismo, que após séculos aprofunda pacientemente este questionamento. Aprofunda-o no seu questionamento próprio num diálogo com as outras religiões.
Questionamento que lhe dá a forma de uma arquitetura, de uma pintura, de uma filosofia, de uma literatura, tentando todas, de mil maneiras, expressar a natureza humana e o sentido da vida. "Venerável porque ela conheceu bem o homem», diz Pascal da religião cristã. E, com certeza, outras religiões, outras filosofias aprofundaram o mistério do homem. Mas a secularização não pode eliminar a longa tradição cristã.»
«As soluções não vêm delas mesmas. Eles nascem da articulação entre o real e um pensamento, um sistema de valor, uma conceção do mundo. São muitas vezes a escolha do menos mal, sempre precária e também exigente e difícil.
«Acredito que a política, tão dececionante que possa ter sido aos
olhos de alguns, tão dessecante às vezes aos olhos dos outros, precisa
da energia dos comprometidos, da vossa energia. Ela precisa da energia
daqueles que dão sentido à ação e que colocam no seu coração uma forma
de esperança»
É por isso que ao ouvir a Igreja sobre esses temas [migrações, bioética] não encolhemos os ombros. Nós ouvimos uma voz que extrai a sua força do real e a sua clareza de um pensamento em que a razão dialoga com uma conceção transcendente do homem. Nós escutamo-la com interesse, com respeito e podemos mesmo fazer nossos muitos dos seus pontos.
Mas esta voz da Igreja, sabemos no fundo, vós e eu, não pode ser injuntiva. Porque é feita da humildade daqueles que moldam o temporal. Por conseguinte, só pode ser questionadora. E em todas essas questões, em particular nessas duas que acabei de evocar, porque se constroem em profundidade nessas tensões éticas entre os nossos princípios, às vezes os nossos ideais e o real, somos levados de volta para a humildade profunda da nossa condição.
O Estado e a Igreja pertencem a duas ordens institucionais diferentes, que não exercem o seu mandato no mesmo plano. Mas ambos exercem uma autoridade e até mesmo uma jurisdição. Assim, cada um de nós forjou as nossas certezas e temos o dever de formulá-las claramente, para estabelecer regras, porque é nosso dever de Estado. Também o caminho que compartilhamos poderia ser reduzido ao comércio das nossas certezas.
Mas também sabemos, vós como nós, que a nossa tarefa vai além disso. Sabemos que é fazer viver a respiração daquilo que servimos, fazer engrandecer a chama, mesmo que seja difícil e sobretudo se é difícil.
Devemos constantemente evitar a tentação de agir como meros administradores do que nos foi confiado. E é por isso que o nosso intercâmbio deve fundar-se não na solidez de certas certezas, mas na fragilidade do que nos interroga, e por vezes nos desampara. É preciso ousar fundar a nossa relação na partilha dessas incertezas, ou seja, na partilha das questões, e singularmente questões humanas.
«O que eu espero que a Igreja nos ofereça é sua liberdade de
expressão. (...) Essa liberdade de expressão numa época em que os
direitos estão a florescer, apresenta muitas vezes a particularidade de
recordar os deveres do homem em relação a si mesmo, ao seu próximo ou ao
nosso planeta»
É aí que o nosso intercâmbio foi sempre mais fecundo: na crise face ao desconhecido, na consciência partilhada do passo a transpor, da aposta a tentar. E é aí que a nação mais se engrandeceu da sabedoria da Igreja, pois há séculos e milénios que a Igreja tenta as suas apostas e ousa seu risco.»
«Este horizonte de salvação desapareceu, é certo, do comum das sociedades contemporâneas, mas é errado, e vemos bem sinais de que permanece enterrado. Cada um tem o seu próprio modo de o nomear, transformar e transportar, mas é ao mesmo tempo a questão do significado e do absoluto nas nossas sociedades, que a incerteza da salvação traz a todas as vidas, mesmo as mais resolutamente materiais, como um tremor no sentido pictórico do termo, é uma evidência.»
«Acredito que a política, tão dececionante que possa ter sido aos olhos de alguns, tão dessecante às vezes aos olhos dos outros, precisa da energia dos comprometidos, da vossa energia. Ela precisa da energia daqueles que dão sentido à ação e que colocam no seu coração uma forma de esperança. Mais do que nunca, a ação política precisa do que a filósofa Simone Weil chamou de efetividade, ou seja, essa capacidade de fazer existir no real os princípios fundamentais que estruturam a vida moral, intelectual e, no caso, crenças espirituais.»
«O que eu quero vos quero apelar esta noite é que se envolvam politicamente no nosso debate nacional e no nosso debate europeu, porque a vossa fé é uma parte do compromisso de que este debate precisa e porque, historicamente, sempre o alimentastes porque a eficácia implica não desconectar a ação individual da ação política e pública.»
«Vivemos numa época em que a aliança de boas vontades é preciosa
demais para tolerar que elas percam o seu tempo a julgarem-se umas às
outros. Devemos, de uma vez por todas, admitir o desconforto de um
diálogo que se baseia na disparidade das nossas naturezas, mas também
admitir a necessidade desse diálogo»
«O que eu espero que a Igreja nos ofereça é sua liberdade de expressão. (...) Essa liberdade de expressão numa época em que os direitos estão a florescer, apresenta muitas vezes a particularidade de recordar os deveres do homem em relação a si mesmo, ao seu próximo ou ao nosso planeta. A mera menção dos deveres que nos são impostos é por vezes irritante; essa voz que sabe dizer aquilo que arrelia, os nossos concidadãos ouvem-na mesmo se estão longe da Igreja. É uma voz que não está desprovida dessa "ironia por vezes terna, por vezes gélida" de que falava Jean Grosjean no seu comentário sobre Paulo, uma fé que sabe como poucas subverter as certezas até nas suas fileiras. Essa voz, às vezes revolucionária, às vezes conservadora, muitas vezes ambas ao mesmo tempo, como dizia Lubac nos seus "Paradoxos", é importante para a nossa sociedade.
É preciso ser-se muito livre para ousar ser paradoxal, e é preciso ser paradoxal para se ser verdadeiramente livre. É isso que nos recordam os melhores escritores católicos, de Maurice Clavel a Alexis Jenni, de Georges Bernanos a Sylvie Germain, de Paul Claudel a François Sureau, de François Mauriac a Florence Delay, de Julien Green a Christiane Rance. Nesta liberdade de palavra, de olhar que é o deles, encontramos uma parte do que pode iluminar a nossa sociedade. E nesta liberdade de palavra, eu coloco a vontade da Igreja de iniciar, manter e fortalecer o diálogo livre com o islão de que o mundo tanto precisa (...).»
«Por fim, há uma última liberdade que a Igreja nos deve dar, é a liberdade espiritual. Porque não somos feitos para um mundo cruzado apenas por objetivos materialistas. Os nossos contemporâneos precisam, quer acreditem ou não, de ouvir falar de outra perspetiva sobre o homem, além da perspetiva material. Precisam de saciar outra sede, que é uma sede de absoluto. Não se trata aqui de conversão, mas de uma voz que, com os outros, ouse ainda falar do homem como um ser vivo dotado de espírito. Que ouse falar de algo diferente do temporal, mas sem abdicar da razão ou do real. Que ouse penetrar na intensidade de uma esperança, e que por vezes nos faça tocar com o dedo esse mistério da humanidade que se chama santidade, de que o papa Francisco diz na exortação publicada hoje que é "o rosto mais bonito da Igreja".
«Vivemos numa época em que a aliança de boas vontades é preciosa demais para tolerar que elas percam o seu tempo a julgarem-se umas às outros. Devemos, de uma vez por todas, admitir o desconforto de um diálogo que se baseia na disparidade das nossas naturezas, mas também admitir a necessidade desse diálogo, porque visamos, cada um na sua ordem, fins comuns, que são a dignidade e o sentido.»
Comentários
Enviar um comentário