A conversa entre António Lobo Antunes e José Tolentino Mendonça podia ter durado para sempre e não apenas uma hora. Mas foi uma bela hora em que se falou de Deus, claro, e sobretudo de amor
Vê-los
entrar de mão dada. Vê-los a entrarem muito devagar, como que amparados
um no outro, já de olho na assembleia que os espera. Vê-los e perceber,
nesse curto compasso de tempo gasto pelos dois para irem do fundo do
palco até às cadeiras onde vão conversar, que António gosta de José
Tolentino e José Tolentino gosta de António.
Sentir o amor.
A
conversa entre o escritor António Lobo Antunes e o padre e poeta José
Tolentino Mendonça estava anunciada como um “grande encontro”. Não
sabíamos que a próxima hora iria passar num ai, mas secretamente
desejávamos que assim fosse. Chovera grande parte da manhã e, como
escreveu um outro poeta, Deus parara o sol sobre Lisboa (vamos
lembrarmo-nos disso quando António atirar uma citação sem aviso – “Que
coisa são as nuvens?” – e José Tolentino apanhar a referência a um filme
de Pasolini). Escrever que nos sentimos abençoados a ouvi-los só parece
exagero a quem não teve a sorte de estar no momento certo no auditório
do Capitólio – e Deus teve tudo a ver com isso.
O
dia em que António conheceu José Tolentino foi o dia em que a escritora
Ana Teresa Pereira (“Uma das pessoas mais docemente misteriosas que
conheci”) o encontrou na Madeira e lhe ofereceu uma tradução do Cântico dos Cânticos.
“O nome do tradutor nada me dizia”, confessa, “mas era um poema de uma
grande qualidade, um grande poeta, uma voz extraordinária.”
Se
já sentia uma imensa admiração, respeito e inveja dos poetas, aquele
livro ajudou-o a aproximar-se da poesia e de Deus, com o qual sempre
teve uma relação complicada e conflituosa. “Zango-me imenso com Deus”,
confessa, arrancando os primeiros risos da plateia. “Não sou como
Voltaire que dizia: 'Cumprimentamo-nos, mas não falamos'. Eu falo, mas
de vez em quando zango-me.”
A partir daí, conta,
andou constantemente à procura das obras do poeta madeirense, mas
continuava sem conhecer o pessoalmente. Até que um dia, Eugénio de
Andrade lhe falou nele.
“Ele recebia-me muito bem,
no Porto, com vinho fino e uns bolinhos que achava de que eu gostava.
Tinha uma casa muito agradável, viam-se as palmeiras e o mar… Vou dizer
um poema dele, o primeiro que me vier à cabeça, para vocês verem como
ele era...” [e diz “Iremos juntos separados as palavras mordidas uma a
uma, taciturnas, cintilantes (…)]
Naquela tarde já
longínqua, Eugénio de Andrade contou-lhe que sentia uma enorme inveja de
Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim que morrera
recentemente, porque tivera a felicidade de morrer de mão dada com o
José Tolentino. “Ele contou isto e os seus olhos encheram-se de
lágrimas, os meus também... Temos a sorte de estar aqui com um homem
excecional.”
O “homem excecional” sorri e aproveita
mais uma pergunta colocada pela jornalista Sara Belo Luís (“Os leitores
são os crentes da literatura?”, quer saber a moderadora astuta) para
responder à declaração de amor acabada de ouvir. Se os leitores “fazem
viva a literatura, dando-lhe algo que ela deseja”, se o poema “é como o
riscar de um fósforo” e o verso é dado pelos deuses, António Lobo
Antunes já não é apenas o escritor. “É a encarnação da sua dádiva, na
sua desmesura.”
Os leitores, esses são a consolação,
diz Tolentino. “A literatura ainda nos deixa nesta margem, só por causa
deles é que os escritores não desistem”, acredita. “Os leitores dão-nos
a ilusão (ou a verdade), com a sua convicção e amor, de atravessar o
rio, de passar para lá da margem, de as palavras serem aquilo que elas
sonham ser. Por isso os leitores são essenciais para a literatura. E a
literatura serve para nos salvar, para nos ajudar a viver. Avançamos de
mãos dadas.”
[Escreva-se, antes de assunções rápidas
e erradas, que não foi por essa razão que os dois entraram de mão dada
no palco. Foi num entras-tu-primeiro-não-entras-tu que acabaram por
entrar assim, e afinal não podia ter sido doutro modo.]
António
e José Tolentino são parecidos – e não é apenas no amor. Quando
escrevem não pensam em ninguém, é uma inquietação, uma vontade de ser. E
são ambos bichos. Desta vez, é o poeta quem o diz, e é como se
ouvíssemos o escritor. “Não sou um homem convencionado e, nesse sentido,
não se lhe pode pedir que escreva para um leitor. Escrevo para um
buraco negro.”
Instado a comentar, António olha para
a plateia e ri-se. “Estou aqui a pregar no deserto, mas vocês
interessam-se muito mais pelo Facebook.” Reparou – como não? – que na
primeira fila há vários smartphones à vista, e então dispara que tem
pena de ver pessoas de dedo no telemóvel, sem nunca olharem umas para as
outras, como já tinha pena dos casais calados nos restaurantes. E das
pessoas que não leem, que se privam da arte.
“Não
tenho telemóvel, nem computador, nem cartão de crédito. Sou livre, não
tenho nada disso. Sou um moderno franciscano. Agora, nem tenho carro.
Nunca fui tão livre como agora.”
Invejamos e
aplaudimos. E no rescaldo dos aplausos o escritor lembra-se de mais um
poema, desta vez de Carlos Oliveira, que fala dos abismos das coisas.
Diz dois ou três versos e ironiza: “Isto não é melhor do que um SMS?”
Mas, como está tudo ligado, volta atrás, à troca entre o escritor e os
leitores. Ao amor. “Todo o escrever é um ato de amor. Um livro só está
realmente escrito quando tem um leitor, nem importa que seja só um.”
José
Tolentino concorda com António (“A razão que nos faz escrever é o
amor”) e acrescenta-lhe um outro tema: “Escrever é uma forma de
contrariar a morte, de contrariar o nada. A criação é a possibilidade de
riscar um fósforo no escuro. Num romance, encontramos a nossa
possibilidade, a tal mão que nos vai ajudar a caminhar num corredor
vazio. É isso que a literatura nos oferece.”
Não lhe
peçam é para, nesta equação, substituir a literatura por religião,
ri-se o padre e poeta. Porque se a literatura nos leva para outra
margem, “a religião é o salto no escuro”, nota.
É a
deixa para voltar a entrar António Lobo Antunes, que logo se diz “um
miraculado”. A história de uma meningite aos 8 meses que pôs o avô
paterno a fazer uma promessa já é conhecida, mas o escritor pode
contá-la cem vezes e é sempre uma delícia. Se o neto não morresse, esse
avô, homem de grande devoção a Santo António, levá-lo-ia a fazer a
primeira comunhão a Pádua. Coube ao pai, jovem médico de 25 anos, fazer a
punção lombar que o tirou do coma – ou terá sido Santo António a fazer
um milagre? Certo é que o pequeno António foi mesmo a Itália e prometeu,
de mão na tumba do santo, que se um dia tivesse um filho dar-lhe-ia o
seu nome e levá-lo-ia também ele até Pádua.
A viagem
de um mês por Itália, também com os pais, teve várias peripécias:
António foi atropelado por uma bicicleta na Suíça, e perdeu-se na Praça
de São Marcos, em Veneza. A discussão entre o avô e um italiano seria
épica e terminaria com uma afirmação finalíssima – “Santo António era de
Lisboa e de Portugal” e mainada! No fim, o escritor herdaria a devoção
ou pelo menos à-vontade suficiente para pedir cura para os dois cancros
que veio a ter em adulto.
Agora, ouve o padre e
ouvimos nós (e com um sorriso porque Lobo Antunes é um mestre a
fazer-nos rir a falar de coisas sérias): “Da primeira vez, pedi-lhe
imensa desculpa e curei-me. Da segunda, voltámos a falar.” Com Deus
seria sempre mais difícil, confessa. Falta-lhe intimidade, quase o trata
por Senhor Doutor, sente-se como o drogado que pede a moedinha. “A
nossa relação é pedinchona, estou farto de pedir cigarros a Deus e a
maior parte das vezes ele nem olha, claro.”
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