O P. José Tolentino Mendonça conversa esta quinta-feira com a
jornalista Anabela Mota Ribeiro a propósito do seu novo livro, "Elogio
da sede", durante a sessão de lançamento da obra, que será apresentada
pelo responsável máximo dos Jesuítas em Portugal, P. José Frazão
Correia.
O volume, editado pela Quetzal, contém as meditações propostas
pelo poeta e ensaísta durante os Exercícios Espirituais do papa e da
Cúria Romana realizados em fevereiro, nos primeiros dias da Quaresma, em
Ariccia, próximo do Vaticano. Francisco assina o prefácio e a mensagem
final.
«Obrigado por este apelo a abrirmo-nos sem medo, sem rigidez,
para sermos suaves no Espírito e não nos mumificarmos nas nossas
estruturas que nos fecham», declarou o papa no final do retiro,
dirigindo-se ao P. Tolentino Mendonça, primeiro diretor do Secretariado
Nacional da Pastoral da Cultura.
Olançamento decorre às 18h30, na Universidade Católica, em
Lisboa (auditório Cardeal Medeiros). Após a apresentação decorre a
conversa entre o autor e a jornalista, seguindo-se um momento musical
e, por fim, a sessão de autógrafos.
Por ocasião do Dia Mundial do Livro, apresentamos um excerto da obra.
José Tolentino Mendonça
In "Elogio da sede"
In "Elogio da sede"
A água é ensinada pela sede
Aos sedentos é útil recordar que há uma ciência da sede. Tomada
de um ponto de vista técnico a sede vem caracterizada como um conjunto
de sensações internas que a desidratação desperta em nós e que a
reidratação repara. É uma definição rápida esta, e que claramente supõe
muito mais. Na verdade, quando nos apercebemos de que temos sede
estamos a beneficiar de uma silenciosa e vital interação dos sistemas
fisiológicos de controlo do nosso próprio corpo, que se organizam para
transmitir-nos essa preciosa informação. Ao que parece, num adulto
saudável, este mecanismo de alerta é suficiente para fazê-lo procurar
um estado de hidratação adequado, mas nem sempre é assim. Tanto a
capacidade de deteção da sede como a possibilidade de resposta positiva a
este estímulo podem estar alteradas e, até mesmo, diminuídas, expondo a
pessoa a riscos de que não se dá conta. Temos sede e não nos
apercebemos. De um modo cada vez mais frequente uma das perguntas que
os médicos tendem a universalizar para os pacientes de qualquer idade é
esta: «Que quantidade de água bebe por dia?» E normalmente bebemos
menos do que aquilo que devíamos. É uma boa pergunta para transpormos
para o plano espiritual. Será que reconhecemos a sede que há em nós?
Apercebemo-nos da desidratação que, voluntária ou involuntariamente,
nos impomos? Damos tempo a decifrar o estado da nossa secura? A poetisa
Emily Dickinson dizia que «a água é-nos ensinada pela sede». São João
da Cruz afirmava que podemos beber mesmo na obscuridade porque a nossa
sede ilumina a fonte. O que é que a nossa sede nos ensina? Que fonte ela
ilumina e esclarece? Será que fazemos da nossa sede uma escola de
verdadeiro conhecimento, nosso e de Deus? Ou, pelo contrário, aceitamos
viver à míngua de água, procurando mascarar uma sede que não
escutamos?
A dor da nossa sede
Não é fácil reconhecer que se tem sede. Porque a sede é uma dor
que se descobre pouco a pouco dentro de nós, por detrás das nossas
habituais narrativas defensivas, asséticas ou idealizadas; é uma dor
antiga que sem percebermos bem como encontramos reavivada, e tememos
que nos enfraqueça; são feridas que nos custa encarar, quanto mais
aceitar na confiança. Em muitas ocasiões, a lâmina da sede colada à
nossa garganta lembra o punhal de Abraão encostado à garganta de Isaac.
E não é uma posição muito cómoda, convenhamos. Várias são as passagens
da Bíblia que vão nessa linha, onde a sede nada tem de simbólico ou de
inspirador. A sede é só sede: uma dura experiência de sacrifício e de
prova. É assim que ela é descrita, por exemplo, em Êxodo 17:1-4:
«Toda a comunidade dos filhos de Israel partiu do deserto de Sin
para as suas etapas, segundo a palavra do Senhor. Eles acamparam em
Refidim, mas não havia água para o povo beber. O povo litigou com
Moisés, e disse: “Dá-nos água para beber.” Disse-lhes Moisés: “Porque
litigais comigo? Porque pondes o Senhor à prova?” Ali o povo teve sede
de água, e murmurou contra Moisés, dizendo: “Porque nos fizeste subir
do Egito para nos fazer morrer à sede, a nós, aos nossos filhos e ao
nosso gado?” Moisés clamou ao Senhor, dizendo: “Que farei a este povo?
Mais um pouco e vão apedrejar-me.”»
Existe uma violência no mundo e em nós próprios que provém da
sede, do medo da sede, do pânico que as condições de sobrevivência não
estejam garantidas. Viramo-nos contra os outros, litigamos, achamo-nos
enganados, queremos voltar ao passado, apressamo-nos a encontrar um
bode expiatório. A sede destapa uma agressividade que nos surpreende,
mas que, se formos honestos, está algures dentro de nós. Claro que não
nos é grato reconhecermo-nos nessa imagem, mas ela oferece-nos pelo
menos a possibilidade de nos tornarmos mais conscientes.
A dor da nossa sede é a dor da vulnerabilidade extrema, quando
os limites nos esmagam. E acerca disso o Livro de Judite (7:20-22)
empresta-nos algumas imagens intensas, que documentam uma situação
concreta, infelizmente igual a tantas outras que se verificaram e
verificam na história. No Livro de Judite (7) trata-se das
consequências devastadoras provocadas pelo cerco do exército assírio:
«O exército da Assíria, a infantaria, os carros de combate e os
cavaleiros mantiveram o cerco durante trinta e quatro dias, até que
todos os recipientes de água dos habitantes de Betúlia ficaram vazios;
as suas cisternas começaram a ficar esgotadas, sem água para poderem
beber a sua porção diária, uma vez que a água era racionada. As
crianças mais pequenas estavam abatidas e as mulheres e os jovens
começaram a desfalecer de sede e a cair pelas ruas e às portas da
cidade. Estavam no limite das suas forças.»
A sede retira-nos o alento, esgota-nos, desvitaliza-nos, faz-nos
perder as forças. Deixa-nos sitiados e sem energia para reagir.
Transporta-nos aos limites. Compreende-se que não seja fácil expormos a
nossa sede.
A parábola da nossa sede
O dramaturgo Eugène Ionesco reagia sempre que ouvia classificar o
seu teatro como «teatro do absurdo». Ele considerava tal descrição
completamente despropositada. Se as suas personagens habitam num mundo
de pernas para o ar, que nos mira do avesso, se usam palavras
desarticuladas e termos inventados, que simplesmente não existem, há
uma razão. Isto acontece para romper com a banalidade de uma
comunicação humana que é muito fluente e reconhecível, mas que já não
diz nada. Ionesco justificava-se explicando que a única coisa
importante no teatro é que ele solte «um grito profundo da alma». Por
isso, as suas peças são parábolas tatuadas sobre o coração e em rutura
com este tempo desencontrado que vivemos.
Uma delas, representada pela primeira vez em 1964, chama-se "A
sede e a fome". Conta a história de um casal — Jean, o homem, Marie
Madeleine, a mulher —, onde cada um representa uma posição diferente não
só perante a vida prática, mas também quanto ao sentido da própria
vida. Jean é devorado por um desejo sem objeto, um infinito vazio, uma
inquietude sem coordenação com nada de real. Ele vive abrasado por uma
sede e por uma fome que nada parece aplacar. E que rugem dentro dele
continuamente como um trovão: «Tenho sempre fome. Como e é como se não
tivesse comido. Este vazio, este vazio que não consigo encher... O meu
estômago é um buraco sem fundo; a minha boca é um abismo cujas paredes
são de fogo. Fome e sede, fome e sede.» A mulher tenta reorientá-lo,
mas em vão. Ela interroga-se: «Porque é que não lhe agrada criar
raízes?» Ou então: «Onde poderá ele procurar aquilo que está desde
sempre ao seu alcance, que se encontra ali, debaixo dos seus pés?» Ele,
porém, mesmo amando a mulher e a filha, não acredita que um amor assim
limitado possa satisfazer a grandeza da sua sede: «O universo é ainda
maior, e o que me falta é-o ainda mais.» Em vez de viver na sede do
absoluto, Jean escolheu viver o absoluto da sede. Por isso, tudo lhe
parece ínfimo, insuficiente e mesquinho. Sobre todas as coisas espalha o
mesmo veneno da lamúria, condenando-as. Esta sede, a que ele não
consegue dar um rosto, fez dele um homem sem casa, nem raízes; incapaz
de criar laços; estrangeiro de si mesmo; perdido no vazio do labirinto
onde escuta apenas o solitário rumor dos seus passos.
Se tivéssemos de contar a parábola da nossa sede, porventura
teria traços semelhantes. Uma sede que se torna numa grande
insatisfação, numa desafeição em relação ao que é essencial, numa
incapacidade de discernimento que nos empurra para os braços do
consumismo. Fala-se muito contra o consumismo dos centros comerciais,
mas não podemos esquecer que há também um consumismo na vida
espiritual. E que o que se diz sobre um, ajuda-nos a compreender o
outro.
De facto, as nossas sociedades que impõem o consumo como padrão
de felicidade transformam o desejo numa armadilha. O desejo tem a
dimensão de uma montra e promete uma satisfação imediata e plena que
evidentemente não pode cumprir. Vemos um objeto iluminado numa vitrine
e, nesse momento, ele parece-nos conter o brilho do astro distante pelo
qual ansiamos. É mesmo aquele, pensamos, enquanto avançamos para a
fila da caixa registadora embevecidos com aquele ato de satisfação
simbólica. Mas uma vez comprado, o objeto não parece o mesmo, perdeu
alguma coisa que tínhamos por irresistível, já não tem a consistência
da promessa, como se a posse implicasse uma desvalorização. E com isso
cresce em nós um vazio que nos faz voltar ao ponto de partida, uma vez e
outra e outra. A desilusão atira-nos para o circuito insone do
consumo, onde o nosso desejo adoecido se torna o desejo de nada, a pura
metonímia da nossa carência. O objeto do nosso desejo é um ente
ausente, um objeto sempre em falta. Obsidiados pelo transe comercial
desejamos tanto que já não somos capazes de desejar. Porém, o Senhor
não cessa de nos dizer: «O que tem sede aproxime-se; e o que deseja
beba gratuitamente da água da vida.»
O caminho da nossa sede
Mesmo não se tratando de uma obra religiosa, o livro de Saint
-Exupéry "O Principezinho" é uma espécie de mistagogia contemporânea,
pois inicia-nos na procura do sentido da existência. Não é indiferente o
facto de ter sido escrito no ano de 1943, em plena Segunda Guerra
Mundial, quando tantas feridas e incertezas pesavam, e mais do que
nunca parecia difícil e urgente afirmar aquele «essencial que é
invisível aos olhos». Ora, na verdadeira "peregrinatio animae" que o
Principezinho realiza, depois de deixar o seu planeta, uma das figuras
que encontra é um estranho comerciante de pílulas.
«— Olá, bom dia! — disse o principezinho.
— Olá, bom dia! — disse o vendedor.
Era um vendedor de comprimidos para tirar a sede. Toma-se um por semana e deixa-se de ter necessidade de beber.
— Porque é que andas a vender isso? — perguntou o principezinho.
— Porque é uma grande economia de tempo — respondeu o vendedor. — Os cálculos foram feitos por peritos. Poupam-se cinquenta e três minutos por semana.
— E o que é que se faz com esses cinquenta e três minutos?
— Faz-se o que se quiser...
“Eu”, pensou o principezinho, “eu cá se tivesse cinquenta e três minutos para gastar, punha-me era a andar devagarinho à procura de uma fonte…”»
— Olá, bom dia! — disse o vendedor.
Era um vendedor de comprimidos para tirar a sede. Toma-se um por semana e deixa-se de ter necessidade de beber.
— Porque é que andas a vender isso? — perguntou o principezinho.
— Porque é uma grande economia de tempo — respondeu o vendedor. — Os cálculos foram feitos por peritos. Poupam-se cinquenta e três minutos por semana.
— E o que é que se faz com esses cinquenta e três minutos?
— Faz-se o que se quiser...
“Eu”, pensou o principezinho, “eu cá se tivesse cinquenta e três minutos para gastar, punha-me era a andar devagarinho à procura de uma fonte…”»
Há muitas formas de iludirmos as necessidades que nos dão vida, e
de adotarmos um escapismo espiritual, sem nunca assumir, no entanto,
que estamos em fuga. A nosso favor evocamos sofisticadas razões de
rentabilidade e eficácia, substituindo a audição profunda do nosso
espaço interior e o discernimento da nossa sede por pílulas que
prometem resolver mecanicamente o nosso problema. É tão fácil
apegarmo-nos à ideia de poupar cinquenta e três minutos e sacrificarmos
a isso o prazer de caminhar devagarinho à procura de uma fonte. É tão
fácil idolatrarmos a pressa e a vertigem neste nosso tempo
hipertecnológico e que tem o culto da instantaneidade, da
simultaneidade e da eficácia. Escreve Milan Kundera, em "A Lentidão":
«Há um laço secreto entre lentidão e memória, entre velocidade e
esquecimento. Tomemos uma situação das mais banais: um homem caminha
pela estrada. Por instantes, procura recordar-se de alguma coisa que,
no entanto, lhe escapa. Então, instintivamente, ralenta o passo... Na
matemática existencial esta experiência assume a forma de duas equações
elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à
intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional
à intensidade do esquecimento.»
Como é o nosso passo: sempre tenso e apressado ou humilde e
distendido? Sentimo-nos nutridos pela memória ou secos pela velocidade
de tudo? Sentimo-nos a caminhar devagarinho para uma fonte? Aqui, como
em outros âmbitos da vida, a verdadeira conversão não consistirá em
belas teorias, mas em decisões que resultem de uma tomada de
consciência efetiva das nossas necessidades. E, depois, o passo a passo
dos pequenos gestos e das práticas concretas que nos comprometem.
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