A questão da legalização da eutanásia e do suicídio assistido assume
uma particular relevância, uma relevância que não têm muitas outras
questões políticas que marcam a atualidade.
Estão em jogo dois
princípios básicos, verdadeiros alicerces, que têm estruturado a nossa
civilização e a nossa ordem jurídica. O primeiro desses alicerces é o da
proibição de matar (o não matarás do decálogo judaico-cristão,
refletido no princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no
artigo 24.º. n.º 1, da nossa Constituição) – não podemos branquear a
realidade através de eufemismos (“morte assistida”, “morte digna”,
“antecipação da morte”); do que se trata é de provocar a morte (não
apenas de a aceitar como fenómeno natural, quando não pode ser evitada,
renunciando a tratamentos inúteis e desproporcionados). O segundo desses
alicerces é o de que não há vidas mais ou menos dignas, mais ou menos
merecedoras de proteção; a dignidade da vida é algo de intrínseco, não
se perde com a doença ou a deficiência.
Com a legalização da eutanásia, ao princípio da proibição de matar
contrapõe-se a absolutização da autonomia. Ou seja: já não será proibido
matar sempre, será proibido matar apenas quem quer viver (como se o
mandamento passasse a ser: não matarás quem quer viver). O consentimento
da vítima justificará o homicídio (passa a ser lícito o homicídio a
pedido nalgumas situações). Mas não é correto colocar o valor da
autonomia acima do valor da vida, porque a vida é o pressuposto de todos
os bens terrenos, e também da liberdade e da autonomia, a vida é a raiz
e a fonte da liberdade e da autonomia, sem vida não há liberdade e
autonomia. Da mesma forma que não se justifica a escravidão consentida,
porque dessa forma a liberdade se auto-destrói.
A vida é um bem indisponível. O artigo 24.º, n.º 1, da Constituição
declara-a inviolável sempre, mesmo que o seu titular consinta na sua
violação. Por isso, são punidos o homicídio a pedido e o incitamento e a
ajuda ao suicídio. E há outros bens indisponíveis: não são admissíveis,
mesmo com o consentimento da vítima, ofensas graves à saúde e à
dignidade da pessoa, assim como o trabalho em condições degradantes, ou
com violação de direitos básicos do trabalhador.
Por outro lado, pode questionar-se se o pedido de eutanásia e de
auxílio ao suicídio corresponde à autêntica e mais genuína vontade da
pessoa. Pode ser um pedido ambivalente: mais do que morrer, a pessoa
quer viver sem o sofrimento ou a solidão que experimenta e o seu pedido é
um alerta desesperado de chamada de atenção para esse sofrimento ou
essa solidão. Também há que considerar que a vontade do doente terminal é
muito volátil, oscila entre esse desespero e o apego à vida, sendo a
decisão de pôr termo à vida é a mais irreversível de todas (dela nunca
pode voltar-se atrás). Nunca saberemos se a pessoa que pede para morrer
não mudaria de ideias e não se arrependeria do que disse em situação de
desespero (como se arrependem muitas pessoas que tentam suicidar-se e
disso são impedidas). Poderemos alguma vez ter certezas a este respeito?
Deve valer aqui a máxima: in dubio pro vita.
De qualquer modo, as propostas de legalização da eutanásia e do
suicídio assistido não levam às últimas consequências a prevalência do
valor da autonomia sobre o valor da vida. Se o fizessem, deixariam de
ser crime, em quaisquer circunstâncias, o homicídio a pedido e o auxílio
ao suicídio. O que se propõe é que o deixem de ser apenas em
determinadas circunstâncias, aquelas em que a vida “perde dignidade” (é
esta a expressão usada nalgumas dessas propostas) e deixa de merecer
proteção. É, assim, derrubado o segundo dos alicerces a que me referi de
início: o de que a vida nunca perde dignidade e valor (não há “vidas
indignas de ser vividas”) e nunca deixa de merecer proteção.
Dir-se-á que com a eutanásia e o suicídio assistido se pretende
eliminar o sofrimento. Mas, se virmos bem, a eutanásia e o suicídio
assistido não eliminam o sofrimento, eliminam a vida da pessoa que sofre
(da mesma forma que não se combate a pobreza eliminando a vida dos
pobres, ou – como por vezes se advoga – impedindo que eles nasçam).
Trata-se de desistir de combater e aliviar o sofrimento, apresentando a
morte provocada como resposta para esse sofrimento. O modo de combater e
aliviar o sofrimento passa pelo recurso aos cuidados paliativos (que
permitem eliminar o sofrimento insuportável) e pelo amor para com quem
sofre.
Dir-se-á que, mesmo assim, há sofrimentos que não podem ser evitados.
Dar sentido ao sofrimento inevitável é o desafio próprio da condição
humana, um desafio com que cristãos, crentes de várias religiões,
agnósticos e ateus serão sempre confrontados e a que não podem escapar:
em qualquer fase da vida, na saúde ou na doença, o sofrimento, físico,
psíquico ou espiritual, é incontornável. Muitas respostas podem ser
dadas nessa busca de sentido. A morte provocada é que não pode ser uma
resposta: será o maior dos fracassos nessa busca.
A legalização da eutanásia e do suicídio assistido em situações
marcadas pela doença, pela deficiência e pelo sofrimento tem um alcance
que vai muito para além de casos isolados, tem um alcance social e
cultural. Não se trata apenas de respeitar a vontade das pessoas que
pedem para morrer nessas situações. O Estado, a ordem jurídica e os
serviços de saúde, ao satisfazer tal pedido, estão a afirmar que nessas
situações a vida perde dignidade e deixa de merecer proteção (é
precisamente por isso que passa a ser lícito suprimi-la). Subjacente à
legalização da eutanásia e do suicídio assistido está uma mensagem
cultural de desvalorização da vida nessas situações. E isto tem
consequências de vasto alcance. As pessoas que experimentam a doença e o
sofrimento não são encorajadas, como não são encorajadas as suas
famílias e todas as pessoas que delas cuidam, quando se afirma que a
vida perde valor e dignidade nessas situações e quando se apresenta a
morte provocada como resposta para elas. Perante o desespero de quem
pede a morte por considerar que a sua vida não tem valor, ou que é um
peso para os outros (dizem as estatísticas do primeiro Estado
norte-americano que legalizou o suicídio assistido, o Oregon, que essa
motivação é mais frequente do que a relativa ao sofrimento para o
próprio), a resposta da sociedade e do Estado não pode ser a de
confirmar essas ideias, satisfazendo tal pedido, deve ser, pelo
contrário, a de recusar tal pedido, precisamente porque a vida dessa
pessoa não deixou de ter valor, ela não é um peso para os outros, e a
morte não é a resposta para os seus problemas.
Não é por acaso que associações de pessoas com deficiência (designadas Not dead yet
– mortos ainda não) se opõem com firmeza à legalização da eutanásia e
do suicídio assistido. Porque, mesmo que cada um dos membros dessas
associações opte pela vida, o clima cultural que essa legalização
favorece, ao apresentar a morte como resposta aos seus problemas (como
se fosse melhor para elas que morressem, como se estivessem better off dead), afeta todas as pessoas com deficiência.
Quando se derrubam os alicerces de um edifício, ele acabará por cair,
não é possível conter a derrocada. Porque a legalização da eutanásia e
do suicídio assistido abala os dois referidos alicerces, também não será
possível limitá-la a casos excecionais. Progressivamente, o seu campo
de aplicação vai-se estendendo (como sugere a imagem da rampa
deslizante, onde se desce sem ser possível travar), mesmo que a lei
pretenda restringi-lo a casos excecionais. Esse alargamento pode dar-se
através de uma interpretação lata das normas, de um seu incumprimento
sem consequências, ou de uma posterior alteração da lei num sentido mais
permissivo. Isso verificou-se na Holanda e na Bélgica. É uma
consequência lógica e previsível, não um acaso. Uma consequência do
derrube de cada um desses dois alicerces.
Se se derruba o alicerce da proibição de matar em nome da prevalência
do valor da autonomia sobre o valor da vida, a consequência lógica será
a de estender as situações da licitude da eutanásia e do suicídio
assistido da doença terminal para a doença crónica, do sofrimento físico
para o sofrimento psíquico, e até das situações de doença para as
situações de simples vontade de pôr termo à vida (discute-se atualmente
na Holanda uma proposta de legalização da eutanásia de qualquer pessoa
com mais de setenta anos, mesmo que não esteja doente). Afinal, se o que
justifica a eutanásia e o suicídio assistido é a autonomia da pessoa,
porque é que esta só há de prevalecer em situações excecionais, em
situações de doença terminal, ou em situações de doença?
Se se derruba o alicerce do princípio de que a vida humana nunca
perde dignidade e nunca deixa de merecer proteção, se passa a
considerar-se que a morte provocada pode ser um ato de compaixão quando a
vida perde dignidade; pode justificar-se a eutanásia mesmo quando a
pessoa tem incapacidade para exprimir a sua vontade, porque se parte do
princípio de que essa morte será preferível à sua vida marcada pela
deficiência, a doença e o sofrimento. E se essa morte é um bem, porque é
que há de ser exigido o consentimento quando a pessoa é incapaz de o
dar? Por isso, na Holanda é lícita a eutanásia de crianças
recém-nascidas com deficiência graves e é frequente a prática da
eutanásia em pessoas com deficiências profundas ou com demência,
incapazes de exprimir a sua vontade. Está aberta a porta à eutanásia não
voluntária.
É tudo isto que está em jogo quando se discute a legalização da eutanásia e do suicídio assistido.
Por Pedro Vaz Patto
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