"Deus é um poeta. Um diálogo inédito sobre a política e a
sociedade" é o título, traduzido, do volume com a entrevista do
sociólogo francês Dominique Wolton ao papa Francisco.
A edição italiana foi lançada esta segunda-feira, Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. O original, em francês ("Politique et société", Éditions de L'Observatoire), foi publicado em setembro de 2017.
Ao longo de um ano, Wolton foi recebido 12 vezes pelo papa, daí resultando a conversa disponível na obra “Dio è un poeta. Un dialogo inedito sulla politica e la società” (ed. Rizzoli).
Francisco aborda temas cruciais da atualidade e do seu pontificado, como a paz, a guerra, a política, a globalização, a diversidade cultural, o fundamentalismo, e a laicidade saudável.
As desigualdades económicas, o desemprego, as perspetivas para os jovens, o domínio absoluto do «deus dinheiro», a Europa e os migrantes, a proteção do ambiente, o diálogo entre os cristãos, entre as religiões, entre ateus e crentes são também referidas pelo papa.
«Este encontro, tão insólito, com os seus consensos e os seus dissensos, ilustra a apacidade do papa de dialogar no respeito recíproco. Quantos dirigentes políticos terão esta capacidade? Não conformista? Talvez - porque não? - talvez também por isso é tão escutado, para além das instituições», escreveu Dominique Wolton na edição de 21 de abril do "L'Osservatore Romano".
A agência italiana SIR publica um excerto do segundo capítulo, intitulado "Religiões e política", que o SNPC traduz e oferece aos seus leitores.
“Dio è un poeta. Un dialogo inedito sulla politica e la società”
Papa Francisco, Dominique Wolton
Junho de 2016. O templo melhorou decididamente. A primavera chegou a Roma com a sua luz e o seu calor. Outra atmosfera mas o mesmo lugar. O papa Francisco chega com a mesma simplicidade da primeira vez. Sem escolta. Metemo-nos logo ao trabalho. Os temas centrais são o regresso das religiões, a laicidade e o fundamentalismo. Reencontro o nosso diálogo vivo e a impressão de ter todo o tempo deste mundo... Tudo está tranquilo. O contraste é forte quando saímos e reencontramos a algazarra da Praça de S. Pedro: o adro está ruidoso e cheio de gente. A poucos metros da multidão entrevisto o santo padre numa atmosfera de paz e confiança. Abordamos questões importantes. Estranhos paradoxos do desfasamento temporal e da experiência do tempo. Caminho em silêncio, com as suas palavras na minha cabeça. Uma grande liberdade. Nenhum protocolo.
Hoje em dia, como pode contribuir a Igreja para a globalização?
Com o diálogo. Estou convencido de que nos nossos dias nada é possível sem diálogo. Na condição de que se trate de um diálogo sincero, ainda que seja preciso dizer na cara coisas desagradáveis. Sincero: não um diálogo do género «está bem, estamos de acordo», e depois, atrás das costas, afirmar tudo ao contrário.
Creio que a Igreja deve contribuir construindo pontes. E o diálogo é a "grande ponte" entre as culturas. Ontem, por exemplo, falei durante 50 minutos com Shimon Peres, 93 anos. É um homem que tem uma visão, e durante todo o nosso diálogo não fizemos outra coisa a não ser construir pontes aqui e ali. Senti-me verdadeiramente diante de uma grande personalidade, alguém que partilha esta ideia de que a Igreja tem de construir pontes, pontes e ainda pontes...
Para a paz no mundo, o que poderia fazer a Igreja mais do que a ONU?
Sei que a ONU faz muitas coisas boas. Ouço também as críticas, as críticas de fundo que se voltam contra si próprias. Nesta assembleia, que em breve terá de eleger o próximo secretário ou secretária-geral [António Guterres foi o eleito], há uma corrente de saudável autocrítica que sustém a necessidade de «falar menos e agir mais». Com efeito, o perigo, tanto para a Igreja como para a ONU, é o do nominalismo [doutrina segundo a qual as ideias gerais ou os conceitos existem exclusivamente nas palavras que servem para as exprimir]: contentar-se em dizer «é preciso fazer isto e aquilo», depois ficar de consciência tranquila e fazer pouco e nada.
Resta o facto de que a ONU e a Igreja são duas coisas diferentes. A ONU deverá ter mais autoridade, global e física. A Igreja é só e exclusivamente uma autoridade moral. E a autoridade moral da Igreja depende do testemunho dos seus membros, dos cristãos. Se os cristãos não dão testemunho, se os padres se tornam negociantes e arrivistas, se os bispos fazem o mesmo... ou então se os cristãos procuram sempre explorar o próximo, se pagam fugindo aos impostos e não se preocupam com a justiça social, não se comportam como fiéis. Dar testemunho é um ato necessário em ambas as instituições, mas sobretudo na Igreja. A ONU deve tomar decisões, elaborar um plano válido e colocá-lo em ação. E não simplesmente anunciá-lo. Mas com efeito ambas correm o risco do nominalismo. Platão, nas "Górgias", falando da informação, dos sofistas, disse mais ou menos isto: «Os discursos dos sofistas estão para a política como a maquilhagem está para a saúde»... Platão! [«O saber vestir está para a ginástica assim como a sofística está para a legislação, e a culinária está para a medicina como a retórica está para a administração da justiça.»]
Onde está Deus na globalização?
Na globalização, assim como eu a entendo (em forma de poliedro), Deus está em todo o lado, em todas as coisas. Em cada pessoa que dá algo de si e leva um contributo para o todo. Em cada país e no todo. A sua pergunta, todavia (e aqui falo enquanto católico), remete para S. Basílio de Cesareia [329-379, bispo, Doutor da Igreja e autor de tratados sobre o Espírito Santo] e vai para além de S. Basílio. Quem é que faz a unidade da Igreja e quem é que faz as suas diferenças? O Espírito Santo. O Deus que instaura as diferenças, isto é, a singularidade, esta variedade tão grande e bela, é o mesmo que estabelece depois a harmonia. Eis porque S. Basílio diz do Espírito que é harmonia. Deus cria a harmonia na globalização.
Como conciliar diplomacia e evangelização?
A evangelização é um mandato de Jesus Cristo, enquanto que a diplomacia é um comportamento, um nobre mester. As duas coisas não estão ao mesmo nível.
Quer dizer que a diplomacia é feita de relações de força, enquanto que a evangelização é feita de relações de igualdade?
Não, não creio que seja exatamente assim. Porque também na diplomacia há relações de fraternidade. Há relações baseadas no «procurar alguma coisa juntos», há um diálogo; a diplomacia inteligente existe efetivamente. Por outro lado, também os métodos de evangelização podem estar errados.
Muitas vezes critica-se a Igreja por condenar com mais firmeza a violência do que as desigualdades. Por usar dois pesos e duas medidas.
Pode acontecer, mas quanto ao que me diz respeito falo claramente e com força de uma e das outras.
O que não elimina o facto de, historicamente, a Igreja mostrar-se mais indulgente com os governos conservadores e mais preocupada perante dos governos de esquerda. Ou progressistas, se quisermos...
Ambos fizeram coisas boas, como cometeram os seus erros. Mas o Evangelho fala claramente: somos todos filhos de Deus, e quem se crê o menos justo torna-se o mais justo. Jesus leva para o alto o maior dos pecadores. Restabelece a igualdade desde o princípio.
Quanto à violência... pensemos nos grandes ditadores do século passado. Na Alemanha havia cristãos que não viam Hitler com maus olhos, mas havia outros que sabiam muito bem que raça de pessoa era. A mesma coisa aqui em Itália. E se falamos da violência das ditaduras... as violências são muitas. Eu, no entanto, tenho mais medo da violência de luvas brancas do que da direta. A violência de todos os dias, aquela que é feita às domésticas, por exemplo.
Como evitar que a globalização se torne sinónimo de desigualdade e aumento das riquezas só para alguns?
No mundo de hoje, 62 super-ricos possuem a mesma riqueza de 3.5 mil milhões de pobres. No mundo de hoje há 871 milhões de pessoas com fome. E 250 milhões de migrantes que não têm nenhum lugar para onde ir, que não têm nada.
O tráfico de droga tem hoje um volume de negócios de cerca de 300 mil milhões de dólares. E segundo as estimativas há 2400 milhões de dólares que se esfumam nos paraísos fiscais, circulando de um lugar para outro.
A Igreja condena há muito o capitalismo selvagem, há textos e declarações que o demonstram. Porque é que no mundo esta mensagem permanece, na maior parte dos casos, sem ser escutada? As pessoas não a conhecem ou recusam-se a escutar e a compreender? O que é que se deveria fazer para condenar a generalização do capitalismo selvagem, acelerado pela globalização?
Penso nos atuais movimentos de trabalhadores. Em todo o mundo há um despertar dos movimentos populares. Alguns são deixados nas mãos dos sindicalistas, porque os sindicalistas podem provir das classes dominantes, ou pelo menos das classes médias superiores. Trata-se de um movimento forte que reclama os seus direitos. Em alguns países, no entanto, têm de defrontar-se com uma repressão brutal, ao ponto de se arriscar a vida. Uma das dirigentes de um movimento popular, que participou no primeiro movimento popular que se exprimiu no Vaticano, foi morta na América Central...
É difícil, é por isso que, quando os pobres se unem, juntos têm uma grande força. Uma força inclusive religiosa.
Pensa que o crescimento das desigualdades no contexto da globalização possa favorecer um regresso da teologia da libertação?
Prefiro não falar da teologia da libertação dos anos 70, porque é um fenómeno característico da América Latina. Em toda a teologia verdadeira e justa, no entanto, há sempre uma dimensão de libertação; a memória do povo de Israel começa com a libertação do Egito, não é? A libertação da escravidão. A história da igreja, e não só da Igreja mas de toda a humanidade, está cheia de opressores, de uma minoria que domina.
É bem verdade, mas agora, com a globalização e a globalização da informação, podemos vê-lo todos diariamente. Na História nunca houve nada parecido.
Essa é uma questão de pecado... E nesse caso temos de remontar à origem da faculdade de pecar ou à raiz do pecado subjacente a todos nós. Sem cair no pessimismo, porque houve a redenção de Jesus Cristo, a qual é precisamente triunfo sobre o pecado, a origem está lá, a ferida está lá, a possibilidade está lá. Se tu és pobre e eu sou rico e quero dominar cada coisa, corrompo-te e, através da tua corrupção, domino-te.
Estou convencido de que a corrupção é o método utilizado por uma minoria que detém a força e o dinheiro para atingir a maioria.
A propósito da misericórdia, disse uma frase muito bela: «A misericórdia é uma viagem de coração nas mãos».
É bem verdade. Creio que a misericórdia está no centro do Evangelho. Qual é o conselho que Jesus nos dá? «Sede misericordiosos como o Pai». Mas para fazer essa viagem o coração deve deixar-se tocar pela compaixão, pela miséria humana e por qualquer forma de miséria. Só assim pode começar a sua viagem.
De que modo a misericórdia pobre abrir um novo caminho neste mundo de ocmpetição e violência?
Falemos ao nível da simplicidade: o importante, parece-me, são as obras. Neste mundo de violência, por exemplo, há muitas mulheres e muitos homens, padres, irmãs e religiosos que se dedicam aos hospitais, às escolas. Há muitas pessoas respeitáveis, e todas são uma bofetada na cara à sociedade. A sua é uma forma de testemunho: «Eu consumo a minha vida». Quando vamos aos cemitérios africanos e vemos todos aqueles mortos, aqueles missionários, sobretudo franceses, mortos jovens, aos 40 anos, porque contraíram a malária... A riqueza da misericórdia comove. E as pessoas, quando recebem esse testemunho, compreendem e mudam. Querem ser melhores... ou matam aquele que dá testemunho. Porque são esmagados pelo ódio. Testemunhar comporta este risco.
Contei-lhe o que vi na África central? Uma irmã, que teria 83 ou 84 anos, com uma criança de cinco anos. Saudei-a: «De onde és?». «Vivo lá em baixo, vim esta manhã de canos». Aos 83, 84 anos! «Venho todas as semanas para fazer as compras. Vivo aqui desde os 23 anos (era de Bréscia), sou enfermeira e fiz nascer 2300 crianças. A mãe desta pobre pequena morreu no parto, não tinha sequer pai, por isso adotei-a legalmente. Chama-me de mamã.» Esta é a ternura em estado puro. Dedicação. Uma vida inteira! As obras dos misericordiosos. Para mim, visitar os doentes, ir às prisões e fazer ouvir aos reclusos que podem esperar reinserir-se na sociedade, é esta a pregação da Igreja. A Igreja prega mais com as mãos do que com as palavras.
A edição italiana foi lançada esta segunda-feira, Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. O original, em francês ("Politique et société", Éditions de L'Observatoire), foi publicado em setembro de 2017.
Ao longo de um ano, Wolton foi recebido 12 vezes pelo papa, daí resultando a conversa disponível na obra “Dio è un poeta. Un dialogo inedito sulla politica e la società” (ed. Rizzoli).
Francisco aborda temas cruciais da atualidade e do seu pontificado, como a paz, a guerra, a política, a globalização, a diversidade cultural, o fundamentalismo, e a laicidade saudável.
As desigualdades económicas, o desemprego, as perspetivas para os jovens, o domínio absoluto do «deus dinheiro», a Europa e os migrantes, a proteção do ambiente, o diálogo entre os cristãos, entre as religiões, entre ateus e crentes são também referidas pelo papa.
«Este encontro, tão insólito, com os seus consensos e os seus dissensos, ilustra a apacidade do papa de dialogar no respeito recíproco. Quantos dirigentes políticos terão esta capacidade? Não conformista? Talvez - porque não? - talvez também por isso é tão escutado, para além das instituições», escreveu Dominique Wolton na edição de 21 de abril do "L'Osservatore Romano".
A agência italiana SIR publica um excerto do segundo capítulo, intitulado "Religiões e política", que o SNPC traduz e oferece aos seus leitores.
“Dio è un poeta. Un dialogo inedito sulla politica e la società”
Papa Francisco, Dominique Wolton
Junho de 2016. O templo melhorou decididamente. A primavera chegou a Roma com a sua luz e o seu calor. Outra atmosfera mas o mesmo lugar. O papa Francisco chega com a mesma simplicidade da primeira vez. Sem escolta. Metemo-nos logo ao trabalho. Os temas centrais são o regresso das religiões, a laicidade e o fundamentalismo. Reencontro o nosso diálogo vivo e a impressão de ter todo o tempo deste mundo... Tudo está tranquilo. O contraste é forte quando saímos e reencontramos a algazarra da Praça de S. Pedro: o adro está ruidoso e cheio de gente. A poucos metros da multidão entrevisto o santo padre numa atmosfera de paz e confiança. Abordamos questões importantes. Estranhos paradoxos do desfasamento temporal e da experiência do tempo. Caminho em silêncio, com as suas palavras na minha cabeça. Uma grande liberdade. Nenhum protocolo.
Hoje em dia, como pode contribuir a Igreja para a globalização?
Com o diálogo. Estou convencido de que nos nossos dias nada é possível sem diálogo. Na condição de que se trate de um diálogo sincero, ainda que seja preciso dizer na cara coisas desagradáveis. Sincero: não um diálogo do género «está bem, estamos de acordo», e depois, atrás das costas, afirmar tudo ao contrário.
Creio que a Igreja deve contribuir construindo pontes. E o diálogo é a "grande ponte" entre as culturas. Ontem, por exemplo, falei durante 50 minutos com Shimon Peres, 93 anos. É um homem que tem uma visão, e durante todo o nosso diálogo não fizemos outra coisa a não ser construir pontes aqui e ali. Senti-me verdadeiramente diante de uma grande personalidade, alguém que partilha esta ideia de que a Igreja tem de construir pontes, pontes e ainda pontes...
Para a paz no mundo, o que poderia fazer a Igreja mais do que a ONU?
Sei que a ONU faz muitas coisas boas. Ouço também as críticas, as críticas de fundo que se voltam contra si próprias. Nesta assembleia, que em breve terá de eleger o próximo secretário ou secretária-geral [António Guterres foi o eleito], há uma corrente de saudável autocrítica que sustém a necessidade de «falar menos e agir mais». Com efeito, o perigo, tanto para a Igreja como para a ONU, é o do nominalismo [doutrina segundo a qual as ideias gerais ou os conceitos existem exclusivamente nas palavras que servem para as exprimir]: contentar-se em dizer «é preciso fazer isto e aquilo», depois ficar de consciência tranquila e fazer pouco e nada.
Resta o facto de que a ONU e a Igreja são duas coisas diferentes. A ONU deverá ter mais autoridade, global e física. A Igreja é só e exclusivamente uma autoridade moral. E a autoridade moral da Igreja depende do testemunho dos seus membros, dos cristãos. Se os cristãos não dão testemunho, se os padres se tornam negociantes e arrivistas, se os bispos fazem o mesmo... ou então se os cristãos procuram sempre explorar o próximo, se pagam fugindo aos impostos e não se preocupam com a justiça social, não se comportam como fiéis. Dar testemunho é um ato necessário em ambas as instituições, mas sobretudo na Igreja. A ONU deve tomar decisões, elaborar um plano válido e colocá-lo em ação. E não simplesmente anunciá-lo. Mas com efeito ambas correm o risco do nominalismo. Platão, nas "Górgias", falando da informação, dos sofistas, disse mais ou menos isto: «Os discursos dos sofistas estão para a política como a maquilhagem está para a saúde»... Platão! [«O saber vestir está para a ginástica assim como a sofística está para a legislação, e a culinária está para a medicina como a retórica está para a administração da justiça.»]
Onde está Deus na globalização?
Na globalização, assim como eu a entendo (em forma de poliedro), Deus está em todo o lado, em todas as coisas. Em cada pessoa que dá algo de si e leva um contributo para o todo. Em cada país e no todo. A sua pergunta, todavia (e aqui falo enquanto católico), remete para S. Basílio de Cesareia [329-379, bispo, Doutor da Igreja e autor de tratados sobre o Espírito Santo] e vai para além de S. Basílio. Quem é que faz a unidade da Igreja e quem é que faz as suas diferenças? O Espírito Santo. O Deus que instaura as diferenças, isto é, a singularidade, esta variedade tão grande e bela, é o mesmo que estabelece depois a harmonia. Eis porque S. Basílio diz do Espírito que é harmonia. Deus cria a harmonia na globalização.
Como conciliar diplomacia e evangelização?
A evangelização é um mandato de Jesus Cristo, enquanto que a diplomacia é um comportamento, um nobre mester. As duas coisas não estão ao mesmo nível.
Quer dizer que a diplomacia é feita de relações de força, enquanto que a evangelização é feita de relações de igualdade?
Não, não creio que seja exatamente assim. Porque também na diplomacia há relações de fraternidade. Há relações baseadas no «procurar alguma coisa juntos», há um diálogo; a diplomacia inteligente existe efetivamente. Por outro lado, também os métodos de evangelização podem estar errados.
Muitas vezes critica-se a Igreja por condenar com mais firmeza a violência do que as desigualdades. Por usar dois pesos e duas medidas.
Pode acontecer, mas quanto ao que me diz respeito falo claramente e com força de uma e das outras.
O que não elimina o facto de, historicamente, a Igreja mostrar-se mais indulgente com os governos conservadores e mais preocupada perante dos governos de esquerda. Ou progressistas, se quisermos...
Ambos fizeram coisas boas, como cometeram os seus erros. Mas o Evangelho fala claramente: somos todos filhos de Deus, e quem se crê o menos justo torna-se o mais justo. Jesus leva para o alto o maior dos pecadores. Restabelece a igualdade desde o princípio.
Quanto à violência... pensemos nos grandes ditadores do século passado. Na Alemanha havia cristãos que não viam Hitler com maus olhos, mas havia outros que sabiam muito bem que raça de pessoa era. A mesma coisa aqui em Itália. E se falamos da violência das ditaduras... as violências são muitas. Eu, no entanto, tenho mais medo da violência de luvas brancas do que da direta. A violência de todos os dias, aquela que é feita às domésticas, por exemplo.
Como evitar que a globalização se torne sinónimo de desigualdade e aumento das riquezas só para alguns?
No mundo de hoje, 62 super-ricos possuem a mesma riqueza de 3.5 mil milhões de pobres. No mundo de hoje há 871 milhões de pessoas com fome. E 250 milhões de migrantes que não têm nenhum lugar para onde ir, que não têm nada.
O tráfico de droga tem hoje um volume de negócios de cerca de 300 mil milhões de dólares. E segundo as estimativas há 2400 milhões de dólares que se esfumam nos paraísos fiscais, circulando de um lugar para outro.
A Igreja condena há muito o capitalismo selvagem, há textos e declarações que o demonstram. Porque é que no mundo esta mensagem permanece, na maior parte dos casos, sem ser escutada? As pessoas não a conhecem ou recusam-se a escutar e a compreender? O que é que se deveria fazer para condenar a generalização do capitalismo selvagem, acelerado pela globalização?
Penso nos atuais movimentos de trabalhadores. Em todo o mundo há um despertar dos movimentos populares. Alguns são deixados nas mãos dos sindicalistas, porque os sindicalistas podem provir das classes dominantes, ou pelo menos das classes médias superiores. Trata-se de um movimento forte que reclama os seus direitos. Em alguns países, no entanto, têm de defrontar-se com uma repressão brutal, ao ponto de se arriscar a vida. Uma das dirigentes de um movimento popular, que participou no primeiro movimento popular que se exprimiu no Vaticano, foi morta na América Central...
É difícil, é por isso que, quando os pobres se unem, juntos têm uma grande força. Uma força inclusive religiosa.
Pensa que o crescimento das desigualdades no contexto da globalização possa favorecer um regresso da teologia da libertação?
Prefiro não falar da teologia da libertação dos anos 70, porque é um fenómeno característico da América Latina. Em toda a teologia verdadeira e justa, no entanto, há sempre uma dimensão de libertação; a memória do povo de Israel começa com a libertação do Egito, não é? A libertação da escravidão. A história da igreja, e não só da Igreja mas de toda a humanidade, está cheia de opressores, de uma minoria que domina.
É bem verdade, mas agora, com a globalização e a globalização da informação, podemos vê-lo todos diariamente. Na História nunca houve nada parecido.
Essa é uma questão de pecado... E nesse caso temos de remontar à origem da faculdade de pecar ou à raiz do pecado subjacente a todos nós. Sem cair no pessimismo, porque houve a redenção de Jesus Cristo, a qual é precisamente triunfo sobre o pecado, a origem está lá, a ferida está lá, a possibilidade está lá. Se tu és pobre e eu sou rico e quero dominar cada coisa, corrompo-te e, através da tua corrupção, domino-te.
Estou convencido de que a corrupção é o método utilizado por uma minoria que detém a força e o dinheiro para atingir a maioria.
A propósito da misericórdia, disse uma frase muito bela: «A misericórdia é uma viagem de coração nas mãos».
É bem verdade. Creio que a misericórdia está no centro do Evangelho. Qual é o conselho que Jesus nos dá? «Sede misericordiosos como o Pai». Mas para fazer essa viagem o coração deve deixar-se tocar pela compaixão, pela miséria humana e por qualquer forma de miséria. Só assim pode começar a sua viagem.
De que modo a misericórdia pobre abrir um novo caminho neste mundo de ocmpetição e violência?
Falemos ao nível da simplicidade: o importante, parece-me, são as obras. Neste mundo de violência, por exemplo, há muitas mulheres e muitos homens, padres, irmãs e religiosos que se dedicam aos hospitais, às escolas. Há muitas pessoas respeitáveis, e todas são uma bofetada na cara à sociedade. A sua é uma forma de testemunho: «Eu consumo a minha vida». Quando vamos aos cemitérios africanos e vemos todos aqueles mortos, aqueles missionários, sobretudo franceses, mortos jovens, aos 40 anos, porque contraíram a malária... A riqueza da misericórdia comove. E as pessoas, quando recebem esse testemunho, compreendem e mudam. Querem ser melhores... ou matam aquele que dá testemunho. Porque são esmagados pelo ódio. Testemunhar comporta este risco.
Contei-lhe o que vi na África central? Uma irmã, que teria 83 ou 84 anos, com uma criança de cinco anos. Saudei-a: «De onde és?». «Vivo lá em baixo, vim esta manhã de canos». Aos 83, 84 anos! «Venho todas as semanas para fazer as compras. Vivo aqui desde os 23 anos (era de Bréscia), sou enfermeira e fiz nascer 2300 crianças. A mãe desta pobre pequena morreu no parto, não tinha sequer pai, por isso adotei-a legalmente. Chama-me de mamã.» Esta é a ternura em estado puro. Dedicação. Uma vida inteira! As obras dos misericordiosos. Para mim, visitar os doentes, ir às prisões e fazer ouvir aos reclusos que podem esperar reinserir-se na sociedade, é esta a pregação da Igreja. A Igreja prega mais com as mãos do que com as palavras.
In SIR
Trad. / edição: SNPC
Imagem: Dominique Wolton e papa Francisco | D.R.
Publicado em 24.04.2018
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