Desde muito nova sonhaste em ter filhos. Filhos, no plural, porque
imaginavas o teu colo cheio, o teu coração a transbordar de amor.
Quis a vida que assim fosse e tiveste três. Amaste-os a todos de igual forma, tiveste para os três os mesmos sonhos.
Hoje
falamos do mais novo, aquele que tem os primeiros passos e as primeiras
conquistas mais presentes na tua memória, por uma questão de
proximidade temporal.
Lembras-te daquele dia em que o tinhas no
colo e a casa estava estranhamente silenciosa e ele te sorriu?
Disseste-lhe que a rapariga que ficasse com aquele sorriso seria a mais
sortuda deste mundo.
Incentivaste-o e deste-lhe sempre a mão.
Quando caiu ajudaste-o a levantar-se e prometeste que ia passar
depressa. Secaste-lhe as lágrimas e fizeste-lhe cócegas para o fazer
rir.
Ensinaste-lhe o que os teus pais te ensinaram a ti, leste-lhe
os livros que mais mexeram contigo, levaste-o aos passeios que sentias
que lhe dariam um pouco mais de cultura.
Falaste-lhe de história, de religião, da importância da família.
Nas
noites de pesadelos garantiste que estavas ali, para sempre.
Abraçaste-o e lembraste-o como gostavas dele, como irias gostar até ao
fim dos vossos dias.
O menino cresceu.
Começaste a imaginar as namoradas e a ficar nervosa porque, afinal, há coisas que não controlas.
Percebeste,
ao fim de um tempo, que as namoradas não iam lá a casa nem se falava
muito nelas. Paraste para observar e havia algo que não batia certo, que
te deixava um pouco desconcertada, mas não conseguias descortinar o que
era – ou talvez fosse o teu mecanismo de defesa a falar mais alto.
Como
o teu filho já há muito não te procurava para falar, decidiste ir atrás
dele. Sim, pegaste na carteira, no telemóvel, colocaste os óculos de
sol e saíste seguindo pelas ruas a rezar baixinho para que não fosse
nada, para que nada mudasse.
Viste-o chegar perto de uma pessoa,
dar-lhe a mão e um abraço e depois, algo discreto, tão discreto que
passaria ao lado de qualquer pessoa menos tu, viste um beijo. O teu
filho tinha beijado uma pessoa e era a primeira vez que o vias. E essa
pessoa era um rapaz como ele. Tremeste dos pés à cabeça e deste meia
volta, não quiseste ver mais. Conto-te agora que não havia mais para ver
do que o sorriso de felicidade do teu filho, sentado ao lado da pessoa
que o fazia sorrir assim, de orelha a orelha, como só tu anos antes
conseguias. Não havia mais nada para ver porque ele era e sempre foi
discreto e porque sentia medo. Muito medo, quase tanto medo que se podia
comparar com a felicidade que aquele outro rapaz lhe provocava.
Quando
chegaste a casa choraste. A maquilhagem que era impecável desceu pelo
rosto e manchou a saia branca, uma mancha que nunca mais vai sair, numa
saia que nunca mais usarás. Sentaste-te à luz do candeeiro de mesa da
sala e pensaste. Pensaste com todo o teu coração e decidiste como
poderias enfrentar a situação.
Quando o teu filho chegou a casa
chamaste-o e disseste que o tinhas visto – incapaz de nomear o que
tinhas visto, é certo, mas ele percebeu de imediato. E o medo que antes
lhe vivia debaixo da pele passou para a superfície e olhou-te com os
seus olhos grandes à espera do que aí vinha.
Disseste-lhe a frase que jamais esquecerá, mesmo que viva cem anos: ”Tens duas semanas para voltares a ser normal ou podes sair desta casa!”.
Tu,
que sempre lhe estendeste a mão, que prometeste que o amarias de igual
forma, que nunca lhe virarias as costas, TU falhaste em todas essas
promessas quando precisavas de as provar.
O teu filho sabia que
não valia a pena tentar explicar-te que nunca se tinha sentido tão
normal como quando encontrou alguém que gostava dele daquela forma. Que
nunca tinha sido tão feliz, apesar do medo.
Teve a certeza que
estava certo quando não te procurou para falar das suas dúvidas e depois
da sua certeza. Sentiu um vazio no coração e uma dor tão grande que
acreditou que nunca mais ia conseguir voltar a sentir-se alguém.
Aos
dezassete anos fez o que querias que fizesse. Dali a duas semanas
procurou-te e disse-te que era normal outra vez, que não te
preocupasses.
Respiraste de alívio, o teu filho estava de volta.
E assim seguiram e seguem até hoje.
Quero
dizer-te que é fácil julgar, mas que todas as palavras que aqui escrevo
são da minha perspectiva como mãe e como filha que sou.
Acredito
que seja uma grande dor sonhar que os nossos filhos tenham um caminho
sem grandes percalços e perceber que a pessoa que são (e que não se muda
com ultimatos) lhes reserva alguma amargura. Dor. Julgamento.
Constrangimento. Eventualmente alguma violência.
E enquanto
escrevo isto percebo que todos os pais querem o mesmo e o mais certo é
terem os filhos, seja qual for a sua orientação sexual, a terem no seu
percurso essa violência, esse julgamento, essa dor, mas por outros
motivos.
Sonhaste em ser avó, mas nunca ninguém te garantiu que o
teu filho poderia, quereria ou iria ter filhos – amasse quem ele amasse.
Sonhaste
vê-lo entrar na igreja para casar, mas mais uma vez quem sabe se é esse
o seu sonho, a sua visão para selar um amor para a vida toda?
O teu filho, lamento dizê-lo, continua a amar pessoas do mesmo sexo.
O
teu filho, quando tiver possibilidades de sair da tua casa,
provavelmente nunca mais lá entrará por mais de meia hora nem lhe
chamará um lar. Porque foi lá que a mãe, o seu porto seguro, mostrou que
era exactamente o que ele temia do mundo lá fora. Não o aceitou, nem
sequer lhe deu a oportunidade de falar.
Se mãe, ser pai, é amar os nossos filhos incondicionalmente.
Da minha parte tento não criar demasiadas expectativas e ir acompanhando de perto a minha filha.
Porque independentemente de mim ela irá amar. E quem ela amar será algo que só a ela diz respeito.
Ainda
há algumas emanas começou a falar do tema “namorados”. Diz que somos
namoradas e eu corrijo dizendo que não podemos sê-lo porque somos mãe e
filha. Depois fala na tia e eu explico que a situação é a mesma. Fala da
educadora e eu tento que perceba que é uma pessoa mais velha, que cuida
dela na escola e como tal não podem namorar. Em nenhum momento lhe
disse que não podíamos namorar porque somos duas meninas. Porque não é
verdade.
Cresci noutro tempo, num tempo não tão distante assim, em
que numa mesma conversa a resposta teria sido: os meninos casam com as
meninas, as meninas namoram com os meninos. Não cresci habituada a ver
duas mulheres de mãos dadas, em demonstrações públicas de carinho, nunca
vi enquanto crianças dois rapazes aos beijos na rua. Mas sejamos
sinceros, os tempos eram efectivamente outros e as pessoas eram mais
comedidas. E passaram-se vinte anos desde que eu fui uma criança.
No
outro dia no metro ia ao lado de dois rapazes com vinte e poucos anos,
que conversavam. Chegando à paragem de um deles, ele deu um beijo na
boca do outro e combinou falarem mais tarde. Acho que foi a primeira vez
que não vi pessoas a dizerem que não com a cabeça. Foi algo tão
natural, tão simples, que me apanhou de surpresa. Sorri e voltei à minha
leitura. Mas a pensar na coragem que é preciso ter para se ser quem é.
E é isso, mãe, que gostava que soubesses sobre o teu filho.
Ele escondeu-se de ti, escondeu-se dos amigos, mas não pôde esconder-se de si mesmo.
Sei
que achas que se cassasse e tivesse filhos com uma boa rapariga seria
eventualmente feliz e esqueceria aquele deslize que teve quando era novo
e estava confuso. Mas as coisas não funcionam assim.
Ele nunca
vai casar com uma boa rapariga e sabes bem porquê. Sabes que o teu
estômago se vai revirar quando as tuas amigas te perguntarem o porquê,
logo ele que é uma jóia de moço. E no fundo tens já a resposta.
Não digo que é fácil, que vai ser fácil.
Aliás, a vossa relação nunca mais voltará a ser boa.
Dificilmente ouvirás da sua boca como gosta de ti. E se fores tu a dizer-lhe ele não vai acreditar.
Lamento que seja assim, porque no fundo, se olhares bem, ele é ainda aquele menino de colo que te sorriu pela primeira vez.
E estavas certa, a pessoa que for capaz de lhe provocar tal sorriso está cheia de sorte.
Porque ele é o teu menino.
Não te esqueças que continuas a ser mãe.
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