1. A violenta controvérsia
sobre os divorciados recasados e o seu acesso à comunhão eucarística
continua a agitar as comunidades católicas de todo o mundo. Porque será?
Não tenho resposta pronta a servir. O teólogo dominicano, Ignace
Berten, escreveu um livro admirável para que ninguém caia nessa
tentação[1].
Segue o método de transcrever os textos das posições mais
típicas e só no final imite a sua bem informada perspectiva. Não lhe
interessa, unicamente, discutir as três realidades acerca da família que
foram objecto de questionamento e de controvérsia, sobretudo, as que
dizem respeito à contracepção, que põem em causa a doutrina da Humanae
Vitae, o acolhimento dos divorciados recasados pela igreja, o acesso à
comunhão, os homossexuais e a relação homossexual.
Os debates mais vivos dizem respeito aos divorciados recasados. Têm sido os mais apaixonados e, por vezes, violentos.
João Paulo II, na sua exortação
apostólica Familiaris consortio de 1981, no seguimento do primeiro
Sínodo sobre a família (1980), excluía qualquer possibilidade de acesso à
comunhão dos divorciados recasados, a não ser que se comprometessem a
viver como irmão e irmã. Em certas dioceses existia uma pastoral desse
estilo. No entanto, em meados dos anos 70, na Bélgica, já tinha nascido
uma outra perspectiva pastoral. Em 1993, na Alemanha, alguns bispos
promoveram de forma pública, uma pastoral de abertura. Em 1994, a
Congregação para a Doutrina da Fé (GDF) interveio condenando essa
prática e não podendo, nesses casos, fazer apelo à consciência.
Mas os factos são o que são e, nos
Estados Unidos e na Europa, a proporção de divorciados em relação aos
casamentos atinge muitas vezes os 30 a 40%. Dessa situação surgem um
recasamento ou, pelo menos, a constituição de um novo casal.
O mal-estar cresce cada vez mais e as
tentativas pastorais que impõem uma vida de celibatários a estas
pessoas, por vezes muito jovens, torna-se ilógica e, para alguns,
escandalosa.
Neste momento, desenham-se três atitudes
típicas: uma apoia a abertura pastoral do Papa Francisco; outra
regressa à opinião de João Paulo II e, a mais radical, classificou este
Papa como herético e já identificou as suas numerosas heresias.
O livro de Ignace Berten documenta,
citando sempre as fontes, cada uma destas posições. Mas o que lhe
interessa é mostrar o que se joga, em cada uma delas, quanto ao
entendimento do que deve ser a pastoral da Igreja. Parte do Vaticano II e
da audácia do Papa João XXIII ao convocar um Concílio pastoral sem
cedências à oposição fictícia entre doutrinal e pastoral. Pobre doutrina
aquela que não serve a caminhada dos cristãos que vivem em tempos,
lugares e culturas diferentes, num mundo em mudança.
2. Como tinham sido muitas as tentativas
de neutralização do caminho aberto por esse Concílio, o Papa Francisco
resolveu escancarar portas e janelas. A Igreja não é para a Igreja, não
pode ser auto referente. Introduziu, por isso, a linguagem e a prática
de uma Igreja de saída para as periferias. Deseja que os cardeais da
cúria, os bispos das dioceses, os párocos e os teólogos das
universidades abandonem a sua auto contemplação e passem a ser pastores,
a terem o cheiro das ovelhas, porque são estas as importantes. Os
cristãos são um reino de sacerdotes. Pertence-lhes a missão de oferecer a
sua vida para a alegria do mundo todo.
A desgraça deste Papa é não ser, apenas, palavras e bons conselhos. É o primeiro a viver e fazer aquilo que propõe aos outros.
É acusado de não repetir a doutrina de
João Paulo II, do cardeal Ratzinger e de Bento XVI, de não invocar a
infabilidade pontifícia e de ter um discurso terra a terra que todos
podem entender. De insistir mais na misericórdia de Deus do que no
pecado e na cruz e encontrar a alegria do Evangelho junto dos que
precisam de consolação e esperança. Para papa tem pouca altura doutrinal
e uma teologia mais preocupada com a pastoral do que o rigor
metafísico! Abrir ou fechar o futuro, eis a questão.
Como é possível, aliás, que um papa se
atreva a adoptar o caminho e o estilo de Jesus de Nazaré que não tem
medo de ser contagiado pelos doentes, pelos pobres, pelos casais em
situações irregulares, que não permite que os maridos façam
gato-sapatodas mulheres, que abre caminhos de esperança para o que
parece irremediável?
Um papa assim não tem muitas hipóteses
imediatas. João XXIII já foi há muito tempo e depois vieram os
doutrinadores que tinham sempre algo a condenar. Bergoglio só condena o
que estraga a vida às pessoas, sejam doutrinas, sistemas ou atitudes. A
sua ética é muito samaritana e o capítulo 25 de Mateus perturba-o
demais. Está sempre a passar para a outra margem.
3. O que está verdadeiramente em jogo
nas actuais controvérsias sobre a família é o feitio do Papa Francisco
não se resignar a repetir fórmulas dogmáticas, doutrinas definidas para
sempre sobre as mulheres, sobre o casamento, sobre a Eucaristia sobre
seja o que for. Não despreza, de modo nenhum, a tradição da Igreja. Pelo
contrário. Quer torná-la viva, sabendo que a letra mata e só o espírito
de inovação vivifica. Os dogmas e as doutrinas são marcos na caminhada
da Igreja na história humana. Não são eles a pátria celeste. São trilhos
para a viagem, não são o cume da montanha. S. Paulo teve a coragem de
dizer que todos os carismas são para ajudar e nem a fé, nem a esperança
nem as suas formulações são eternas. Para a eternidade só fica a
caridade.
A proibição bíblica da fabricação de
imagens é a proibição da idolatria, a de parar quando é preciso ir mais
longe, mais alto e mais fundo. Existe um comportamento em relação às
formulações doutrinais da Igreja que é, muitas vezes, idolátrico. Como
dizia St. Exupéry, quando se aponta para o céu, muitos olham só para o
dedo.
A perturbação que o Papa Francisco
introduziu no discurso, nas atitudes e na prática pastoral foi a do
combate às idolatrias instaladas.
Diz-se, por vezes, que o séc. XXI ou
será místico ou não será. Creio que é verdade. Mas o místico é aquele
que não pode parar no estabelecido, de uma vez para sempre. Mestre
Eckhart rezava: Deus livra-me de deus, isto é, livra-me das
representações e das fórmulas que te procuram substituir, que impedem a
infinita viagem do desejo, da sede do Deus de Jesus Cristo.
É a paixão da idolatria que mata o Evangelho da nossa alegria.
[1] Ignace Berten, Les divorcés remariés peuvent-ils communier? Enjeux ecclésiaux des débats autour du
Synode sur la famille et d’ Amoris laetitia, Lessius, Éditions jésuites, 2017
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