A abstinência sexual exigida pela lei de Cristo, não pode ser
vista como uma mera proibição, mas como afirmação de um amor maior.
Embora não seja aficionado ao Carnaval, não posso deixar de
reconhecer que é um tempo que me é muito proveitoso em termos
profissionais. Com efeito, o meu negócio é o pecado – o pecado dos
outros, entenda-se! – e não há dúvida de que o Carnaval é época alta
para qualquer sacerdote que se preze. Este ano, as expectativas eram
ainda melhores, porque o lema do Carnaval de Torres Vedras era muito
promissor: ‘Delírio em las Vedras!’
Mas, para minha surpresa, ao
folhear o Expresso de 10 de Fevereiro último, o delírio voltou a
aparecer, desta feita nas palavras de Frei Bento Domingues: “É um acto da teologia das palavras cruzadas. Um delírio”.
Referia-se o ilustre frade dominicano à nota pastoral do
Cardeal-Patriarca de Lisboa sobre a aplicação da Exortação Apostólica
Amoris Laetitia, e não, como algum incauto leitor poderia supor, ao
Carnaval de Torres.
Se ainda o não disse, digo-o agora: sempre
tive uma especial simpatia e gratidão pela Ordem dos Pregadores, por
razões familiares e por ter estudado vários anos nos dois colégios
dominicanos de Lisboa: o de São José, no Restelo, que ainda existe; e o
Clenardo, na Rua do Salitre, que já fechou há uns anos. Aliás, foi no
São José, onde fiz a infantil, que aprendi, com quatro ou cinco anos, a
dura lição da ‘abstinência da carne’: uma vez mordi uma freira que me
contrariou, mas foi tal o castigo que – remédio santo! – nunca mais
mordi nenhuma religiosa, nem leiga sequer. Sou também um leitor atento
das crónicas de Frei Bento Domingues, que nunca me deixam indiferente.
Mas,
voltemos ao delírio. Não ao de Torres Vedras, mas ao do Frei Bento, que
acha que não faz sentido pedir a um homem e a uma mulher que vivem
juntos, mesmo não sendo verdadeiramente casados, que se abstenham dos
actos próprios da vida conjugal. A abstinência seria não só antinatural
como até impossível e, como é sabido, ninguém está obrigado ao que não é
possível. A argumentação até faria algum sentido se todos os cristãos
não estivessem obrigados à abstinência: não só os bispos, padres e
religiosos, que até fizeram um voto nesse sentido; mas também os
casados, excepto em relação ao seu legítimo cônjuge; e os solteiros, em
relação a todas as pessoas, sem excepção.
Se fosse moralmente
aceitável a relação extraconjugal, ter-se-ia de concluir que poderia ser
lícita a violação da fidelidade matrimonial. Quantas vezes? A
samaritana, que até não era má rapariga, já ia no sexto companheiro, o
que a não impediu de se converter. Mas não consta que Jesus lhe tenha
permitido manter aquela generosa colecção de ‘maridos’, nem o parceiro
que então tinha e que, pelos vistos, nem isso era (Jo 4, 7-18). Se assim
não fosse, o adultério deixaria de ser pecado, como há muito já não é
crime.
Cristo, ao absolver a adúltera apanhada em flagrante,
exigiu-lhe que não voltasse a pecar (Jo 8, 11). E, se para os judeus
piedosos o adultério só se realizava quando havia união carnal entre
duas pessoas não casadas legitimamente entre si, Jesus, que não veio
abolir a lei mas dar-lhe pleno cumprimento (Mt 5, 17-18), acrescentou
que também se pode cometer este pecado mortal por desejo, e até por mero
pensamento, se advertido e consentido: “Ouvistes que foi dito: Não
cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para
uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração”
(Mt 5, 27-28).
Por outro lado, para além da sexual, outras muitas
abstinências há, tanto ou mais importantes, a que estão igualmente
obrigados os cristãos por razão da sua fé: a abstinência da mentira, do
ódio, da soberba, da avareza, do roubo, da corrupção, do luxo, da
inveja, da idolatria, da vingança, da exploração, da gula, da
murmuração, etc. Mas, em todos estes casos, bem como no da abstinência
sexual, quando exigida pela lei de Cristo, a renúncia não é uma mera
proibição repressora, ou inibição castradora, mas afirmação de um amor
maior. De forma análoga, uma pessoa apaixonada não entende a fidelidade
prometida como um sacrifício, mas como uma consequência gozosa, mesmo
que custosa, desse mesmo amor.
Frei Bento insiste em que, sobre a
vida íntima conjugal, só o casal é que sabe: “É o casal que deve decidir
a sua vida íntima. Nenhum padre, nenhum bispo, ninguém se pode
intrometer. É ridículo!”. E um frade?! Se calhar pode …
Com
certeza que, não só nesta matéria mas também em todas as outras, há que
respeitar a liberdade das consciências e são sempre os próprios que
devem decidir e arcar com a responsabilidade correspondente. Mas a
Igreja, nomeadamente através do seu magistério e dos seus pastores, tem o
dever de aconselhar os casais, para que estes possam, no expressivo
dizer de São Paulo, “participar da liberdade gloriosa dos filhos de
Deus” (Rm 8, 21). Também o doente deve ter toda a liberdade de seguir,
ou não, as indicações médicas, mas certamente que as receberá com
agradecimento, porque sabe que são para o seu bem. Ninguém é obrigado a
ser católico, mas a todos se pede, sob pena de hipocrisia, coerência com
a fé que livremente se quis professar.
Quando Jesus instituiu a
lei da indissolubilidade matrimonial, alguns dos seus discípulos,
cientes da dificuldade na sua observância, comentaram: “Se é essa a
situação do homem perante a mulher, não é conveniente casar-se!” (Mt 19,
10). A verdade é que, alguns anos depois, já havia casais cristãos
espalhados por todo o império romano, graças também às perseguições de
que resultaram tantos mártires. Numa sociedade divorcista e promíscua
como era a romana de então (Rm 1, 24-32), onde se consentia a mancebia e
até a pedofilia estava bem vista em termos sociais, a fidelidade dos
esposos cristãos chamava poderosamente a atenção, embora muitos a vissem
como uma perigosa utopia, promovida por uma seita condenada a
desaparecer. Foi o contrário que aconteceu: os usos e costumes dos
infiéis foram desaparecendo, ante a beleza e a sublimidade moral dos
ideais cristãos. Os pagãos diziam, com admiração, daqueles primeiros
discípulos de Cristo: “Vede como se amam!” (Tertuliano, Apologeticum,
39, 7).
Também agora, a mensagem cristã é exigente e apenas
compreensível e praticável para quem se atreve a viver um amor
autêntico. Para os outros, na verdade, só lhes resta mesmo o delírio do
Carnaval.
Comentários
Enviar um comentário