As pessoas ficam feias quando crescem...

Mas não deviam
1. As pessoas ficam feias, quando crescem. Reconhecem, secretamente, que o seu crescimento acabou por ser precipitado. Precipitado nas escolhas que fizeram: por birra e por impulso. E por descuido, certamente. E amealham muitos pequenos desamparos. Desamparos nos pequenos gestos de atenção que não lhes dão e que as magoam. Em silêncio. Desamparos nos mimos que, por mais que não queiram, lhes chegam (quase sempre) mal embrulhados. Desamparos porque ninguém parece falar a língua delas como se tivessem um idioma de gestos e de sinais encriptados que se entaramela antes de se apear pelas palavras. Desamparos porque, por mais que ameacem mil vezes que o farão, os pequenos-nada, importantes para elas - que lhes dão vida e cor e movimento - não cabem nem nas frestas dos seus dias e as prioridades dos outros chegam sempre antes. Desamparos quando sentem da vida um burburinho de espuma, como quando as ondas se esticam pela praia, mas nunca as cavalgam. E parecendo ter vontade-própria, não se deixam marear. Desamparos porque são poucas - muito poucas - as ocasiões em que alguém lhes diz, devagarinho, quase sempre sem querer: "penso em ti!".
As pessoas ficam feias, quando crescem. Porque se atropelam, dentro delas, muitos ressentimentos. E porque cultivam mágoas. E se enovelam no desejo de quererem recomeçar e na dor de não o poderem fazer do princípio, como se qualquer dor, agora, avivasse mais o que deixaram por fazer do que aquilo que virá. E porque, sendo sábias, parece que não prosperam: antes minguam.
2. Se a crise da adolescência aceita, com dificuldade, a distância entre aquilo que imaginamos dos pais e o que eles nos dão, a das pessoas, quando crescem, estende-se entre aquilo que dão aos outros e o que a vida lhes dá (como se, sem saberem porquê, ela se tornasse, muitas vezes, um estranho de saída). Há muitos: "Falhei!", envergonhados, dentro das pessoas, quando crescem. E alguns: «Não sou quase nada daquilo que podia ser. E que teria querido ser. E que teria sido se tivesse dito: “Agora, eu quero!... algumas vezes”».
 Nas pessoas, quando crescem, os remorsos cavam trincheiras e o rancor parece que entedia. Tudo se passa como se cada dia, antes de ser vivido, fosse tarde demais.
3. Mas são estas pessoas que ficam feias, quando crescem, que as crianças reconhecem como pais e como professores. E que deviam pôr-se com elas num: “Pergunta-me porquê?” próprio de quem já descobriu que os dias nunca têm só uma, mas muitas cores. E que esperávamos que contrariassem a estranheza do “o que ou quem morre em mim?” que se cola cá dentro quando o corpo parece ser pequeno para tudo aquilo que deixamos por fazer.
São as pessoas que ficam feias, quando crescem, que (muitas vezes) nos guiam de planalto em planalto sem nunca deixarem de nos viver fechados no seu sofrimento. E que parecem pôr um “para sempre!” (onde faltam gestos e clareza e fantasia e laços). Quantos de nós não faremos da eternidade a única alternativa ao tempo que perdemos?
4. As pessoas ficam feias, quando crescem. Mas não deviam! Bastava que aceitassem que todos somos sensíveis e sábios, sempre que os outros nos lêem enquanto os lemos. E que não somos os únicos que imaginam que não há nem céu nem bem nem mal, mas pessoas. E, como todos, desconfiamos que as pessoas não se podem medir, unicamente, por aquilo que fazem. Ou são, sobretudo, boas ou são más. Ou as sentimos bonitas ou são feias. E quem vive de certezas ou se barrica em impasses é um labirinto à procura da sua própria saída.
5. As pessoas ficam mais bonitas quando se precipitam. E quando erram. Sobretudo, muitas vezes. E logo que reclamam, de viva voz, a atenção que lhes falta. E quando pedem mimo, em gestos bem embrulhados. E quando reconhecem que a língua só se entaramela quando se fala para dentro. E que os pequenos-nada são tudo o que torna a vida grande e luminosa. E ficam mais bonitas quando se navegam. Ao leme! E quando namoram. E quando brincam. E sempre que aceitam que crescer é ganhar tempo ao tempo.
Na verdade, ninguém é um exemplo para ninguém! É o desafio de ter em quem acreditar que separa os maus exemplos das ocasiões em que alguém nos diz, devagarinho, quase sempre sem querer: "penso em ti!". E só assim a vida volta para nós. Pelo seu pé. Mais uma vez.


*Texto em repositório com edição especial para a sua versão digital

EDUARDO SÁ

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