Impressiona sempre estar cara a cara com quem vive diariamente
numa cela e cumpre pena pela sua falta, especialmente quando se trata de
penas pesadas ou condenações para a vida.
Não sou visitadora de prisões, mas fui a vários estabelecimentos
prisionais nas últimas décadas. Vou a pedido de reclusos, mas também a
convite das direcções das prisões ou de quem lá trabalha. Vou porque me
faz sentido aceitar o desafio e nunca me ocorreu recusar ir a uma
cadeia. Nesta lógica, acabei por conhecer mais de uma dúzia de prisões e
umas boas centenas de presos.
Impressiona sempre estar cara a
cara com quem vive diariamente numa cela e cumpre pena pela sua falta,
especialmente quando se trata de penas pesadas ou condenações para a
vida. Nunca perguntei a um recluso porque é que estava preso porque não
me compete saber e, muito menos, julgar quem já foi julgado e condenado.
Mas interroguei-me muitas vezes sobre o que teria levado esta mulher ou
aquele homem àquele lugar.
Entre todas as cadeias onde estive
houve umas que me interpelaram de forma mais brutal. Por cem anos que
viva não conseguirei nunca apagar da memória o impacto dessas visitas,
nem o eco das conversas que mantive com reclusas e reclusos em espaços
onde nos sentamos muito próximos uns dos outros, sem barras de ferro a
separarem-nos.
A Prisão-Escola de Leiria, que recebe rapazes muito
jovens, entre os 16 e os 21 anos, foi uma das cadeias que não esqueço.
Vale de Judeus, onde vivem os condenados a penas mais pesadas foi outra
que me marcou e onde voltei mais do que uma vez. As cadeias de mulheres,
como Tires, também deixam a sensação de que uma parte de nós fica para
sempre com elas.
Em Leiria os rapazes são muito novos, mas alguns
deles já cumprem penas muito duras e muito longas. Olhando para eles,
sentada de frente para todos, o pensamento dispara automaticamente em
modo interrogativo, num loop incessante de perguntas. Como terá sido a
sua infância? Quem serão as pessoas importantes nas vidas deles? Terão
mãe, pai, irmãos, avós? E amigos? Onde estavam quando eles cometeram os
crimes pelos quais estão a pagar? E onde estarão agora? Será que os
visitam?
Todos os miúdos podiam ser meus filhos e um deles prendeu
a minha atenção por ter qualquer coisa de criança, que me soou
familiar. Talvez fosse o ar aparentemente sossegado e a maneira tímida
de olhar. Filho de estrangeiros, estava ali sozinho desde o início e
tudo indica que cumprirá a pena sem receber a visita de pai ou mãe. Ao
seu lado havia de tudo, dos mais imberbes aos que, sendo novos, já têm
as caras muito marcadas; havia jovens frágeis e jovens atléticos,
robustos; rapazes com olhar acossado e rapazes com ar provocador. Uns
mais curiosos, outros mais distantes, mas nem por isso menos atentos.
Bem comportados, ouviram e falaram. Fizeram perguntas e interessaram-se.
Vi-os
chegar, em bandos, todos de fato macaco azul escuro, os de origem
africana com enormes cabeleiras afro, daquelas que marcaram os anos 70
(disseram-me que a primeira coisa que muitos rapazes fazem na prisão é
deixar crescer o cabelo por ser uma afirmação de liberdade. Hoje em dia
são raros os africanos que usam o cabelo daquela forma redonda,
exagerada, mas em Leiria havia vários com cabeleiras exuberantes,
gigantes), e assisti à maneira ordeira como se sentaram e esperaram por
instruções dos guardas. Irrepreensíveis, uns e outros. Pelo menos
enquanto durou a visita.
Em Vale de Judeus também me sentei numa
grande roda de reclusos que fizeram perguntas e contaram coisas das suas
vidas, mas também recitaram poemas de sua autoria e mostraram livros e
escritos que fazem na prisão. Os guardas estavam na mesma sala e todos
vimos e ouvimos as mesmas coisas. A primeira vez que fui a Vale de
Judeus, fui com o meu pai, que era um conversador nato, e contava com
ele para as conversas à volta, mas a tarde foi tão marcante que saímos
de lá sem palavras e permanecemos calados até chegarmos a casa. Não
conseguimos trocar nada a não ser um silêncio embargado, estrangulado
por nós impossíveis de desfazer. O peso que se abateu sobre cada um
impediu-nos de falar de tantas vidas desperdiçadas, vividas numa cadeia
que tem o estigma da distância e de ‘estar fora do mundo’, pois ninguém a
vê de lado nenhum e os reclusos também só se vêm uns aos outros durante
anos, décadas a fio.
As memórias fortes das idas às prisões
voltaram a estar muito presentes por ter assistido a uma TED talk
recentemente republicada, gravada em 2014 dentro da Muncy State Prison,
na Pensilvânia, EUA. Dez mulheres condenadas a prisão perpétua e sem
esperança de saírem da cadeia até morrerem, cantam em coro a sua
experiência de ‘lifers’ (sentenced to life in prison) e partilham os seus sentimentos, os seus sonhos e os seus medos. “I’m not an angel” canta Brenda Watkins, a vocalista. “I’m
a woman, I’m a grandmother, I’m a daughter, I have a son. I’m not an
angel, I’m not the devil. I came to jail when I was so young”
Uma
condenação perpétua na Pensilvânia quer dizer exactamente isso: para
toda a vida, sem possibilidade de comutação da pena ou de existirem
períodos de liberdade condicional. Estas mulheres estão a envelhecer na
prisão e algumas delas passaram lá os últimos 30 anos de vida. Foram
julgadas e condenadas quando eram muito novas (uma delas aos 14 anos),
mas continuam a dizer que aquela não é a sua casa. Cantam para fazer a
catarse dos seus medos de morrerem sozinhas, sem voltarem a estar com as
suas famílias, mas também para dizerem os seus nomes e se fazerem ouvir
cá fora. Algumas, para mostrar que muita coisa mudou dentro delas ao
longo de todos estes anos. Não falam do que fizeram nem se ouve a
palavra ‘arrependimento’, mas percebe-se o valor da partilha sobre essa
transformação interior.
O vídeo mostra uma talk radicalmente
diferente do que é habitual no TED, mas nesta semana que antecede o
Natal é importante parar para ouvir este e outros coros de vozes que nos
fazem pensar em todos os Sem-Natal do mundo, sejam vitimadores ou
vítimas*.
* Vítimas no
sentido mais abrangente do termo, note-se, não apenas vítimas de
ofensas, abusos e crimes punidos com penas de prisão. Vítimas de
doenças, acidentes e catástrofes naturais, vítimas de mães e pais que
maltratam, vítimas de filhos que abandonam, vítimas de prepotências,
vítimas de infâmias, vítimas do sistema e de quem gere mal o que devia
gerir bem, vítimas de perseguições e muitas outras aflições, pois todos
os que se sentem vítimas são e serão sempre pessoas para quem o Natal é
um tempo especialmente árido e penoso.
Por Laurdinda Alves
19/12/2017
19/12/2017
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